Gabriela Buescu
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"Estudos de Tradução": uma perspectiva culturalista

 

  1. Princípios e categorias dos "Estudos de Tradução"

O estudo de Mary-Hornby,() contribui de modo significativo para lançar a discussão sobre este tema na Europa. Com efeito, segundo esta especialista, a "Tradutologia" tem-se esforçado por estabelecer e definir esta área como uma nova disciplina() a que falta a componente literária, adstrita apenas à terminologia científica. O estudo de Snell-Hornby tenta preencher esta lacuna, desenvolvendo métodos e conceitos tanto aplicados à teoria linguística como à prática da tradução literária.

De acordo com esta especialista, as antigas categorias (palavra vs. sentido, e tipos formais e rígidos de equivalências) têm de ser substituídos por um princípio holístico baseado no conceito de "gestalt". Nesta perspectiva, entende-se que a língua atinge um grau multidimensional, integrando uma tensão dinâmica de "paradoxos e forças aparentemente contraditórias, o que legitima todo o processo da tradução.() Esta autora considera a tipologia textual de Reiss() demasiado rígida e normativa, propondo, por sua vez, uma prototipologia, um sistema mais flexível, baseado na "gestalt".()

Um grupo de teorizadores que se mostra céptico em relação a estas teorias demasiado normativas e linguísticas situa-se na Bélgica e na Holanda. Outro, o grupo da teoria dos polissistemas, tem o seu centro em Israel, Tel-Aviv. Embora, tenham surgido separadamente, as suas perspectivas coincidem naquilo que hoje se designa por "Estudos de Tradução".

Tendo chegado à conclusão de que os tradutores literários rejeitavam qualquer análise linguística para o seu trabalho, jovens estudiosos belgas e holandeses decidiram efectivamente confrontar-se com a situação emergente de uma nova abordagem da matéria. Segundo James Holmes() o Nome e a Natureza dos "Translation Studies"() distinguia-se das outras teorias da tradução e das "ciências da tradução" que não se revelavam de modo algum adequadas à tradução literária.

Por seu turno, André Lefevere, no seu artigo "Translation - The Focus of the Growth of Literary Knowledge", refere que a abordagem hermenêutica e neopositivista se baseia em "mutual "wilful" misunderstandings"() e acrescenta que esta aproximação, que validava ideias, verdades e formas gramaticais universais, se apresentava de forma extremamente redutora em relação ao universo literário.()

Assim, emerge dos chamados "Low Countries" uma tentativa de nova abordagem, primeiro pondo de lado teorias e em seguida, prestando maior atenção às metodologias aplicadas na tradução.

Atentemos nas palavras de Edwin Gentzler:

"Translation Studies began with as call to suspend temporarily the attempts to define a theory of translation, trying first to learn more about translation procedures. Instead of trying to solve the philosophic problem of the nature of meaning, Translation Studies became concerned with how meaning travels. [...] Translation as a field was no longer viewed as either literary or non-literary, but as both".()

Assim, de acordo com Gentzler, os "Translation Studies" tendem a ser um campo de trabalho e de pesquisa multidisciplinar, em que o literário e o não-literário estão igualmente incluídos.

Também André Lefevere se refere ao que considera ser o objectivo fundamental dos "Estudos de Tradução" numa das suas obras.()

A metodologia adoptada pelos "Estudos de Tradução" parece-nos pertinente e eficaz, na medida em que parte dos procedimentos e da análise das traduções para uma abordagem mais teórica e, consequentemente não normativa.

Os especialistas em "Estudos de Tradução", como James Holmes e outros, defendem que estes se tornam menos centrados no sentido de identidade e de referência e mais voltados para a análise da relação do texto traduzido com o texto-fonte. Essa relação será então analisada no âmbito da rede de práticas significantes intrínsecas a cada uma das culturas em jogo, isto é, a cultura-fonte e a cultura-alvo.

Em jeito de síntese, cabe citar João de Almeida Flor,() na panorâmica do desenvolvimento, evolução e metamorfose dos Estudos de Tradução ou, como parece preferir, tradutológica:

"Enquanto progride, nos últimos vinte anos, a translatologia regista uma mudança de configuração, na medida em que se afasta da tutela da ciência linguística e se aproxima ou é subsumida pelas disciplinas literárias históricas, teóricas, críticas ou comparativistas. Este novo enquadramento funcionalista subverte alguns dos princípios sobre que assentavam as perspectivas tradicionais. Sublinha, por exemplo, que a tradução deve se encarada de modo projectivo, isto é, não em função da sua adequação ao texto de origem mas do ponto de vista da língua alvo, como realidade pragmaticamente determinada, orientada para o horizonte de expectativa do receptor, imersa num complexo linguístico e cultural cujas normas, limitações ou constrangimentos condicionam e pré-determinam as opções a adoptar pelo tradutor. Em lugar de pretender estudar o processo de transformação, as instâncias e os movimentos entre elas, o modo como a mensagem, codificada pelo emissor, é pelo receptor descodificada e reconstruída, contabilizando as perdas e ganhos ocorridos nesse circuito, importa antes concentrar atenções no próprio produto, realidade central do campo de estudo, encarando-o como elemento integrante da cultura receptora, isto é, enquanto dado historicamente contextualizado que, como tal, só deve ser abordado em articulação com os diversos factores sociais, económicos, políticos etc. que constituem o seu desenvolvimento".()

 

2. A actividade tradutológica na actualidade em Portugal: alguns elementos pertinentes.

Neste século, a actividade tradutológica em Portugal tem constituído, poderíamos dizer, uma actividade "entusiástica" em que avulta o grande tradutor de obras alemãs Paulo Quintela (Goethe, Nietzsche, Rilke). António Sérgio e Aquilino Ribeiro destacam-se também como excelentes tradutores, e Vitorino Nemésio como tradutor de Madame de Sévigné. Outros, como Eugénio de Andrade e António de Macedo, tradutores de Garak Lorek e de Felix Cucurull. Jorge de Sena traduz poesia e, ao traduzir, faz poesia. José Rodrigues Miguéis, José Marinho, tradutor de Le Rouge e le Noir de Stendhal, Jaime Brasil, João Gaspar Simões, Cabral do Nascimento e João Palma Ferreira engrossam a hoste de tradutores da actualidade. Luís de Sousa Rebelo traduz do inglês O Deus das Moscas de William Golding. Outro nome digno de registo é João de Almeida Flor que se revela um excelente tradutor do inglês. Fernando Assis Pacheco e João Barrento, tradutor e teórico da problemática da tradução, são nomes entre muitos outros.

Entretanto, a actividade destes especialistas divide-se entre a prática e a teoria. Com efeito, a eclosão de polémica entre Paulo Quintela e Jorge de Sena torna-se emblemática da insolubilidade do debater interpres vs orator.

Ao abordar a figura de Paulo Quintela como tradutor, João Barrento,() ele próprio tradutor de grande gabarito, considera que, não obstante a dimensão de Paulo Quintela como tradutor literário, ele não fez escola, na medida em que sempre se recusou a abordar as margens teóricas da actividade translatória, assumindo-se com autor-segundo (entendemos recriador da obra literária) e renunciando a uma metodologia que pressupõe vários gestos críticos, desde a Crítica Textual até à Retórica, passando pela Genologia. Daí uma polémica que o opôs a Jorge de Sena, não sem alguma truculência.

Se, segundo João Barrento, Quintela foi um tradutor mas não um teórico da tradução, pelo contrário, o tradutor João de Almeida Flor concilia a teoria com a actividade translatória. Efectivamente, ele não repudia, antes enfatiza, a importância dos passos preliminares do acto de traduzir.

De facto, João de Almeida Flor tece a este propósito importantes considerações, válidas fundamentalmente no que diz respeito à adopção de critérios de maior ou menor fidelidade quanto à forma e ao sentido:

"No decurso (e por força) desse processo de indagação analítica, o tradutor vai construindo a sua própria imagem ou representação do enunciado, reorganizando as componentes, conferindo nova hierarquia às prioridades do original, redistribuindo as ênfases sintácticas ou semânticas, quer dizer, exercendo funções alteradoras de acordo com os pressupostos adquiridos nas suas anteriores experiências de leitura. Desta forma, enquanto o potencial de significado do texto se mantém teoricamente da sua actualização estão sujeitos a variações com acentuado grau de amplitude".()

Qual, então, deverá ser a prioridade? - parece ser esta a questão fulcral que aqui se coloca.

De facto, o trabalho da tradução envolve fundamentalmente a consciência das dissemelhanças, existentes entre as línguas-fonte e alvo. E já Tytler afirmava() que essas dissemelhanças, fruto para ele dos diferentes "génios" das línguas, abrangiam não só o espírito como o próprio meio ambiental e cultural que envolve a língua.

 

3. A tradução literária

A questão na área da tradução de uma obra literária tem vindo ciclicamente a colocar-se, pois, em termos da eterna polémica gerada em torno da tradução: fidelidade ou liberdade?

Modernamente, os estudos linguísticos insistem na inviabilidade da prática de uma coincidência absoluta a nível semântico e estilístico, o que vem reiterar, de facto, a natureza do texto literário não só do ponto de vista intrínseco como também extrínseco, já que as mensagens no texto literário, estão, como vimos, sempre condicionadas pelos factores formais, sintácticos, semânticos, culturais, rítmicos, métricos e outros. A literalidade e a coincidência absolutas não são pois viáveis na tradução, embora pareça ser sensato reconhecer que existem certos tipos de textos, nomeadamente técnicos, em que elas aparecem com um peso sem dúvida maior.

A capacidade de percepção de uma diferença está de tal forma sujeita à casuística, que leva inclusivamente certos teorizadores a postularem aquilo a que chamam a "impossibilidade de traduzir". No entanto, e curiosamente, mesmo nesses casos acaba por haver o reconhecimento de que a prática da actividade da tradução é um dado irrecusável e recorrente: de algum modo, o que se reconhece assim é, para retomar as palavras já citadas de Susan Bassnett, a impossibilidade de encarar a actividade da tradução como a prática de uma coincidência entre os dois códigos postos em confronto.

Assim, por exemplo, poderemos citar as palavras de Damaso Lopez Garcia, que inicia o seu texto argumentando a impossibilidade da tradução no seu sentido mais lato e até filosófico, o que não o impede de reconhecer que ela não deixa, no entanto, de se fazer - e isto leva a que a tradução deixe de ser pensada, como em alguns casos, como uma espécie de "mal necessário", e passe a ser considerada enquanto condição para a comunicação cultural e, em particular, a comunicação verbal:

"Es imposible traducir. Pero la imposibilidad a la que suele aludirse asi es aquella imposibilidad que aconsejaria no construir todas terminen teniendo goteras y cayéndose; porque no puede construirse la Casa."()

De facto, esta alusão a e mesmo comparação da Tradução com a construção de casas é verosímil neste sentido e poderemos mesmo aplicar estas palavras especificamente à Tradução literária.

A questão da intraduzibilidade (na sua versão negativa) ou pelo menos da dissociação entre equivalência e igualdade (na sua versão afirmativa) fundamenta-se no facto de muitas vezes não ser evidentemente possível uma coincidência total entre dois signos em duas línguas diferentes, ou seja, no facto de as equivalências não serem na realidade totais e absolutas, já que o léxico não é um corpo inerte mas é em si mesmo uma estrutura potencialmente viva, isto é, que adquire vida e dinâmica através da contextualização das acepções de cada palavra.

Constituindo-se a actividade translatória como uma actividade sempre ligada a uma prática, não deixa, por ser teorizável (e teorizada), de ser sobretudo isso mesmo: uma prática. Jonathan Griffin, o famoso tradutor inglês de Fernando Pessoa, defende a mesma posição: "Em teoria, traduzir é impossível - mas na prática traduz-se. Porque é necessário".() E diz, mais especificamente em relação à tradução de poesia: "Felizmente, a possibilidade de traduzir de modo fiel um belo poema é mais frequente do que se julga",() alegando que, neste caso, se deve adoptar uma posição de equilíbrio e compromisso entre a fidelidade e a liberdade. Por outro lado, é preciso também ter em conta a forma como a tradução expõe a diversidade de apreensão e manifestação dos mecanismos culturais, como lembra Yves Chevrel,() ao comentar o conceito, proposto pelo Centro de Pesquisas sobre a tradução de Gottingen, de Kulturschaffede Dipherenz, ou seja, aquela que, dizendo respeito à própria actividade de traduzir textos literários, tem em conta a(s) Diferença(s) Cultural(is). Se, com efeito, a própria realidade é diferentemente recortada pelo universo conceptual de duas línguas, o certo é que não é possível ignorar a forma como as funções do próprio imaginário se encontram, elas mesmas, conformadas na noção de realidade existente, subjazendo nomeadamente a funcionamentos retóricos específicos - veja-se por exemplo o caso paradigmático da metáfora.() Este complexo de elementos implica que não é possível encarar a tradução como realizando um trabalho através de decalques e correspondências relativamente ao TP, mas através de equivalências dinâmicas, isto é, construindo um sistema que não é exactamente o mesmo, mas outro, cujo valor no contexto lhe é no entanto equiparável.

É que, se por um lado a tradução é sempre tradução de alguma coisa (por alguém, é claro), é também um facto que ela é tradução para alguém - para um público mais ou menos extenso: até mesmo no caso de uma tradução pessoal esta orientação é determinante. No entanto, esta orientação, que não é aliás específica da actividade da tradução, mas que é implicada por toda a transacção verbal e cultural, é por vezes passada em claro, insistindo-se mais no carácter de uma tradução de, e não tanto no de uma tradução para. Ora, a questão nomeadamente do valor e, por isso, do sentido, só pode colocar-se se for pensada em função desta múltipla orientação que a actividade translatória pressupõe.

Daí que o tradutor e mais ainda o tradutor literário tenha de ser algo mais do que um mero conhecedor das línguas em presença; na realidade, a sua prática implica que através dela ele deve assumir-se como um "teórico", um crítico e também em certa medida como um criador literário.

 

 4. Tradução e Retórica

Não se pode afirmar que se tenha já chegado à conclusão daquilo que é um texto literário como facto ou actividade social. Northrop Frye, na sua sistematização Anatomy of Criticism, considera que "ainda não possuímos critérios para distinguir uma estrutura verbal literária doutra que não o é",() enquanto Jakobson, por seu lado, afirma: "a fronteira que separa a obra poética da que não é obra poética é mais instável que a fronteira dos territórios administrativos da China".()

Por outro lado, o facto é que de alguma maneira nos confrontamos com uma relação com uma suposta realidade - um discurso fictício que se relaciona com os quotidianos da língua. Assim, não é possível deixar de reconhecer que o texto literário se caracteriza por criar um universo fictício cujas relações com a realidade são necessárias, mesmo se mediatas, e ainda por descrever esse universo de forma particular, que Jakobson entendia ser a função poética da linguagem.

Esta reflexão teve, entretanto, a vantagem de chamar a atenção para a distinção entre o objecto da literatura e o objecto da crítica literária, reflexão para a qual muito contribuiu o aparecimento da escola formalista russa, integrada por um grupo de jovens linguistas e "poetas" de Moscovo e Leninegrado, no início do século XX, que colocaram a tónica da sua reflexão sobre este conjunto de questões. A partir daqui, desenvolveram-se inúmeras tentativas de definir o funcionamento literário da língua, aquilo que distinguiria a "língua" prosaica da "língua" literária: os ritmos, regulares e irregulares, as repetições das categorias sintácticas que criam paralelismos, toda a espécie de refrões que tornariam perceptível a língua no seu modo de uso literário, surgindo evidentemente a retórica como um desses mecanismos privilegiados. Seriam então perceptíveis os efeitos literários criados discursivamente. Segundo Jakobson, quando domina a função poética da língua, "a similitude torna-se um procedimento constitutivo da sequência".() Este procedimento constitutivo, para Jakobson, engloba os elementos encarados em função de um qualquer tipo de similitude (fonológico, morfológico, sintáctico ou semântico).

Mesmo se, de acordo com os nossos pressupostos globais, a noção de literariedade, em termos absolutos, não nos pode levar a inferir um sistema tipológico que claramente distinga entre literário e não-literário, o conjunto de reflexões que brevemente referimos parece-nos ter alguma pertinência pelo facto de chamar a atenção para o problema formal que o uso do discurso implica. É este problema formal, ou matéria formal, que aqui nos interessa reter para a análise que empreenderemos, embora entendendo-o de acordo com uma formulação histórico-periodológica. Isto significa que, mesmo se de um modo não substancial, julgamos lícito falar de "convenções literárias" que em determinado momento estético representam um conjunto de opções temáticas e formais que agem sobre a compreensão e recepção de um texto como literário. Tentaremos mostrar, precisamente, os principais núcleos temáticos e formais que se encontram operacionais, no acto de tradução de Fingal.

É assim possível, em nossa opinião, distinguir dois níveis principais: por um lado, o nível pelo qual se constitui um mundo fictício, relacionado todavia, como vimos, com o plano da realidade; por outro, o nível pelo qual se encara sobretudo a organização do discurso em função das convenções formais seleccionadas, que compreende géneros literários, estilo, retórica, ritmos e prosódia. É evidente que, em função de tudo o que já anteriormente afirmámos, a tarefa do tradutor ou "reescritor", no seu trabalho de manipulação do texto-fonte, nos parece ter de ver acima de tudo com o estilo e em particular com a retórica, já que nesta julgamos concentrarem-se opções discursivas que podem ser entendidas como marca de uma época estética circunscrita no texto-fonte.

Já tivemos oportunidade de nos referirmos ao nível literário de um texto que passa fundamentalmente pela sua dimensão ficcional de mais largo espectro, embora sempre referente à realidade. Com este aspecto se prende o estilo, com toda a panóplia retórica, nela figurando as suas complexas construções figurativas, muitas vezes de elevado nível de sofisticação. De facto, podemos inferir que a conjugação destes factores contribui grosso modo para caracterizar o estilo de um autor, de uma escola literária, de uma época, em que a utilização criteriosa e marcante de certos recursos retóricos, em detrimento de outros, personaliza e individualiza certos rasgos do discurso literário, formando, mediante este conjunto de procedimentos, um gesto de algum modo irrepetível ou inimitável, pelo menos em termos absolutos. Este último aspecto, aliás, tem já muito que ver com a própria "reescrita" do tradutor que, confrontando-se com a impossibilidade de "imitar" na sua globalidade, recorre ao poder de "manipulação" do texto-fonte em função do texto/Cultura-Alvo. Tratar-se-á, então, de transferências entre dois polissistemas culturais, em que o jogo retórico poderá funcionar diferentemente dentro de cada um deles.

Contudo, tendo em consideração o aspecto fundamental retórico presente no texto-fonte, deveremos debruçar-nos com alguma detenção sobre a arte da Retórica, remontando à Antiguidade, nomeadamente à escola dos sofistas. Com o objectivo de persuadir ou convencer os ouvintes, os sofistas recorriam a técnicas discursivas mais ou menos complexas com vista a uma maior beleza mas também uma maior eficácia do discurso, com o fim de cativar e melhor captar a atenção dos ouvintes e assim atingir o objectivo máximo da retórica - persuadir.

Segundo Heinrich Lausberg, recuperando o valor atribuído à Retórica desde os Antigos, o discurso depende de duas "artes" essenciais no que diz respeito à expressão linguística: por um lado a gramática, que consiste num conjunto de regras que sistematizam a pureza linguística: ars bene loquendi; por outro a retórica, que é o conjunto de regras com vista ao sucesso da persuasão: ars bene dicendi.()

Na sua Poética, Aristóteles reflecte sobre esta arte, que ele designa como "modos de elocução", e afirma:

"111. Resta tratar da elocução e do pensamento, pois das outras partes da tragédia já falámos.

112. O que respeita ao pensamento tem seu lugar na retórica, porque o assunto mais pertence ao campo desta disciplina o pensamento inclui todos os efeitos produzidos mediante a palavra; dele fazem parte o demonstrar e o refutar, suscitar emoções (como a piedade, o terror, a ira e outras que tais) e ainda o majorar e o minorar o valor das coisas".()

Aristóteles equacionava assim o problema da forma privilegiada pela qual o mundo ocidental o continuaria a receber nos séculos seguintes, mesmo se com diferentes valorações dos vários propósitos enunciados pelo filósofo. O certo é que podemos afirmar que os objectivos aqui referidos são válidos, no geral, se considerarmos o funcionamento social dos textos e pretendermos analisar os modos como eles participam do sistema literário que integram. Ora o nosso objectivo primordial insere-se nesta questão, visto que o acto de traduzir não pode ser entendido fora desta perspectiva, no fundo, funcionalista. A dimensão retórica surge, neste contexto, como lugar privilegiado para manifestar este conjunto de pressupostos, pois ela implica a actualização ou, pelo contrário, a rejeição de certos procedimentos. Estas opções serão por nós entendidas como actos de "manipulação", no sentido em que anteriormente nos referimos a ela, e por isso o nosso objectivo será analisar esta dimensão retórica como lugar a partir do qual as relações entre texto-fonte e texto-alvo podem ser equacionadas.

Assim sendo, a "aposta" retórica é, para nós, fundamental, e, de modo geral, a Retórica de que Aristóteles foi o fundador. As figuras (de retórica) são não só um ornamento de discurso, mas um utensílio que favorece a sedução (delectare) e que visa, primordialmente, a persuasão (suadere), a qual, do ponto de vista do emissor do discurso, pretende e consegue actuar sobre os destinatários desse mesmo discurso, (receptores, auditores, leitores), agindo no sentido de lhes incutir uma opinião, fazer experimentar um sentimento ou uma emoção, ou sentir um desejo ou uma vontade. A retórica pode levar a apreciar e definir valores morais (de Bem e de Mal), estéticos (Belo ou Medíocre), e outros, de onde decorrem os três grandes géneros da retórica: judiciário, deliberativo e demonstrativo. Concretamente, a nossa "aposta" vai no sentido de tentar identificar o que, através da retórica (ou das retóricas), distingue os sistemas culturais envolvidos, através de um fenómeno de apropriação.()

Nesta conformidade, poder-se-á colocar a questão da Retórica e Tradução: será de facto possível e até mesmo viável "traduzir" o estilo e a própria retórica? Questão tantas vezes debatida, ela coloca-se com evidente premência quando inserida no âmbito de uma reflexão sobre a Tradução como uma "reescrita" da literatura traduzida, mais até do que da tradução literária, como sustenta João de Almeida Flor.()

Podemos igualmente relembrar, no mesmo sentido, as palavras de Dâmaso López Garcia, que inicia o seu texto postulando a impossibilidade de Tradução (tal como ela é entendida por alguns estudiosos) no sentido mais lato e mesmo filosófico, o que no entanto não torna impeditivo, em sua opinião, o acto de traduzir:

"Es impossible traducir. Pero la impossibilidad a la que suele aludirse así es aquella impossibilidad que aconsejaria no construir más casas, pues, en definitiva, todas terminam teniendo goteras y cayéndose; porque no puede construirse la casa".()

A comparação, a nosso ver extremamente sugestiva, da tradução com a construção de casas é verosímil e significativa, e poderemos mesmo aplicar estas palavras especificamente à literatura traduzida, sustentando mais uma vez uma perspectiva funcionalista do acto de tradução.

Aliás, repare-se como por exemplo Jonathan Griffin, o tradutor inglês de Fernando Pessoa, defende esta mesma posição, de inspiração pragmática:

"Em teoria, traduzir é impossível - mas na prática traduz-se. Porque é necessário.",()

acrescentando mais especificamente em relação à tradução de poesia:

"Felizmente, a possibilidade de traduzir de modo fiel um belo poema é mais frequente do que se julga",()

e alegando que, neste caso, se deve adoptar uma posição de equilíbrio e compromisso entre fidelidade e liberdade. Esta conciliação de ordem pragmática parece-nos, sem dúvida, fundamental: sem ela, seremos necessariamente conduzidos a retirar uma ilacção teórica - traduzir é impossível - que não encontra nenhuma correspondência com um funcionamento prático e social, quer sincrónica quer diacronicamente (de facto, sempre se traduziu ao longo da história e hoje continua a traduzir-se). A ilacção teórica que referimos parece-nos ter a ver sobretudo com um entendimento prescritivo e normativo da tradução, enquanto a perspectiva que aqui defendemos é sobretudo de ordem descritiva.

Referindo-nos então concretamente à Retórica, será possível transpô-la para o Texto-Alvo? De facto, coloca-se aqui igualmente a questão do importante conceito a que Yves Chevrel alude,() também proposto pelo centro de pesquisas de Göttingen sobre tradução, ou seja, a chamada Kulturschaffende Differenz.() Questão que diz igualmente respeito à própria actividade de traduzir literatura e que, de igual modo, se prende com a teoria dos polissistemas proposta, como já vimos, por Itamar Even-Zohar e Gideon Toury.

Se a própria realidade é conformada de modos muito diferenciados por duas Línguas/Culturas, é evidente que, por maioria de razão, a componente imaginária e simbólica manifestará também essas diferenciações, visto que esta componente é de consideração fundamental para a contribuição dos termos figurativos e retóricos. É então óbvio que estes processos devem ser considerados relativamente ao Texto/Alvo, não como um mero decalque à base de "equivalências", mas propondo outras formas, cujo valor no contexto e na Cultura-Alvo seja inerente e adequado - ou seja, se encontre funcionalmente justificado.

 

 

5. Tradução e hermenêutica

Esta forma de encarar as línguas leva-nos inevitavelmente à relação intrínseca entre tradução e hermenêutica; de facto, neste caso, a tradução constitui um medium para tornar compreensível o que será de outra forma estranho ou ininteligível e, assim, o tradutor é um mediador entre dois mundos. Segundo Richard E. Palmer,() o acto de traduzir não constitui um mero acto mecânico de encontrar sinónimos porque "o tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes". De facto, o tradutor tem de ter a consciência de que cada língua é uma interpretação de um mundo por si só, que tem à partida uma visão globalizante e total da realidade e, ao traduzir mesmo expressões concretas e originais, ele deverá ter este aspecto em conta. E quando isso acontece, que é evidentemente sempre, ele está a efectuar uma operação hermenêutica.

Neste contexto, surge com especial relevo a teorização produzida no âmbito dos estudos de recepção, nomeadamente por Wolfgang Kaiser: defendendo a relação intrínseca entre o acto de ler e o acto interpretativo e considerando, pois, que não é possível dissociar um de outro, em particular em termos temporais (como defendia a teoria tradicional da interpretação), os estudos de recepção acentuam a dimensão comunicativa de qualquer acto de leitura, ao mesmo tempo que acentuam também a sua dimensão de compreensão. É neste mesmo quadro que deve ser pensado o acto de traduzir, encarado como um acto de leitura, talvez privilegiado - no sentido em que se formaliza através de um acto de escrita ou, como quer André Lefevere, num acto de reescrita.()

Assim, o Tradutor deve, acima de tudo, perspectivar o seu trabalho no sentido de não o limitar a uma mera transposição de palavras em línguas diferentes, nem a um mero ponto de vista linguístico, mas pautar por ampliá-lo ao ponto de o inserir num campo mais globalizante em que estão também em jogo valores extralinguísticos fortemente vinculados a específicos ou polissistemas culturais. Digamos que ele opera sempre em termos semióticos, e não apenas em termos de simples transposição linguística.

 

 

6. "Estudos de Tradução": Holismo e Multidisciplinaridade

Os "Estudos de Tradução", como já vimos, têm vindo a desenvolver-se ao longo dos últimos vinte anos mais especificamente no âmbito da tradução literária, por oposição à "Übersetzunswissenschaft", nascida nos anos 60, e que se consubstancia numa teoria fundamentalmente de orientação linguística.

Os primeiros passos dos "Estudos da Tradução" foram dados por James Holmes, Raymond Van den Broeck e André Lefevere, que colocaram esta disciplina no pressuposto de estudos mais descritivos. Também Susan Bassnett, da Universidade de Warwick, em Inglaterra, tem vindo a dar um contributo muito válido aos "Estudos de Tradução", afirmando que eles se baseiam essencialmente numa área pluridisciplinar,() não esquecendo no entanto o carácter que lhes é próprio e inerente.

De facto, segundo Susan Bassnett, a teoria da tradução não "pertence" exclusivamente, como área conceptual, nem ao domínio da literatura comparada nem ao da linguística. Neste sentido, poder-se-á falar da tradução como uma área de carácter fundamentalmente multidisciplinar, que aquela autora caracteriza do seguinte modo:

"... The combining of work in linguistics, literary studies, cultural history, philosophy and anthropology".()

Tal atitude, deve desde já sublinhar-se, difere substancialmente de muitas das reflexões desenvolvidas no interior da questionação sobre a tradução. Assim, e no âmbito desta última, existiram diversos termos tentando dar conta do que era "traduzir", não se adaptavam da mesma forma à realidade a que queriam chegar e, nessa medida, construíam objectos metodológicos diferentes. Alguns, como Theodore Savory, entendiam-na sobretudo como uma "arte", outros, como Eric Jacobsem, definiam-na primordialmente como "craft", acentuando o seu carácter técnico; outros ainda referiam-se-lhe como "ciência". Horst Frenz, eminente comparatista, optou por uma consideração intermediária, visto que, para ele, a tradução não é totalmente uma arte criativa nem uma "técnica" imitativa ou reprodutiva mas antes um processo discursivo cuja posição epistemológica se situa em ambas.

Nos anos 60, os "Translation Studies" sofreram profundas alterações, fruto de uma conciliação dos estudos linguísticos, com o criticismo literário e a estilística, o que conduziu a significativos desenvolvimentos no âmbito da metodologia crítica e do trabalho desenvolvido sobretudo a partir das reflexões produzidas pelo Formalismo Russo, cujo impacto sofre, a partir desses anos-chave, um importante alargamento. De facto, os progressos verificados no século XX no âmbito dos "Translation Studies" (Estudos de Tradução) devem-se substancialmente ao trabalho desenvolvido por um conjunto de estudiosos na Rússia dos anos 20 e, posteriormente, do Círculo Linguístico de Praga e dos seus seguidores.() Segundo os mesmos, a tradução implica muito mais do que uma abordagem científica de duas línguas. Pode dizer-se que, com uma formulação deste tipo, se desenha já uma significativa alteração de pressupostos e até de práticas: por um lado, relativiza-se o paradigma "cientificista" cuja manifestação maior se consubstancia na teoria linguística da tradução; por outro lado entende-se, evidentemente, que a componente linguística, sendo central, não esgota os procedimentos que a tradução sempre implica e que, por essa razão, esta inclui uma série de outros aspectos (os que, mais tarde, virão a ser designados como culturais) cuja consideração é, de pleno direito, igualmente importante.

Nos anos 50, entretanto, e no âmbito de um momento cultural em que tal paradigma "cientificista" parece ter encontrado algumas das suas formulações mais expressivas, e cingindo-nos agora ao campo específico dos estudos linguísticos e tradutológicos, revela-se pertinente notar o fascínio que o "vislumbre" de uma potencial tradução automática exerceu sobre numerosos especialistas e estudiosos da época. De facto, a recepção entusiástica que a Gramática Generativo-Transformacional conheceu, bem como o facto de um dos seus postulados fundamentais residir na aceitação de uma gramática potencialmente universal, marcaram de forma indelével os estudos linguísticos e, por extensão, o entendimento da actividade de tradução - até porque, como foi já por nós indicado, esta continuava a ser predominantemente entendida como um subdomínio da linguística.

Daqui aos estudos sobre tradução foi um passo, que parecia pequeno: afastadas as teorias filosóficas, já longínquas, de Schleiermacher (1758-1834) e Humboldt (1767-1835), os estruturalistas cedo se pronunciaram a favor da possibilidade de reduzir a questáo da tradução a um mero processo mecânico de transferências e, sobretudo, a uma questão de encontro de "equivalências".() Encontrava-se, assim, formulada a hipótese teórica de uma "tradução automática", cuja possibilidade dependia exclusivamente da "descoberta" das regras linguísticas que subjaziam à produção dos enunciados.

No entanto, mais tarde, e tendo como origem sobretudo as já mencionadas escolas russa e checa, assistimos ao aparecimento de uma nova tendência, a que já fizemos referência, os "Estudos de Tradução", tendência cujo significado e amplitude, do ponto de vista teórico e cultural, constitui no nosso entender momento determinante na reflexão contemporânea sobre o problema.

Assim, deveremos em primeiro lugar reconhecer a existência de uma "Ciência da Tradução", cuja formulação, como tal, tem o seu centro na escola de Leipzig e se encontra personificada nos nomes de Kade e Hoffmann. Ambos preconizam um estudo da tradução substancialmente fundamentado em técnicas, aproximando-o, dentro do possível, de uma ciência exacta. Nesta esteira segue a escola americana, encabeçada, como já vimos, pelas teorias de Nide que, de uma forma não tão radical, aceita a necessidade de o tradutor ter em atenção toda a contextualização cultural manifestada nas (pelas) línguas, e assim procurando encontrar solução para tal problema através dos dois parâmetros técnicos que estabelece e que tivemos já ocasião de referir com os termos "Equivalência Formal" e "Equivalência dinâmica". Com estas propostas, como já vimos no capítulo 3, Nida não faz mais do que procurar uma compatibilização (ou "empatia") entre os parâmetros tecnicistas e o que ele entende por "cultura" - e que, no fundo, ele acaba por reduzir à mera questão do "sentido" ("Meaning"), objecto específico do campo da semântica, entendida como parte integrante da Linguística. São estes, de resto, os aspectos que ele pretende equacionar, de uma forma em que ecoa a quase exclusiva determinação linguística do sentido, quando formula parte da sua teoria nos seguintes termos:

"One way of defining a D.-E. Translation is to describe it as "the closest natural equivalent to the source-language message"".()

Ao abordar tais formulações teóricas de Nida, não podemos deixar de chamar a atenção para o termo "natural", a que este estudioso dá um sentido muito particular: "Natural" envolve para Nida toda a questão de contextualização cultural, que, como vimos, ele acaba por reduzir o "sentido" (e a um sentido cuja produção/recepção é do âmbito puramente linguístico).

Com esta sua teoria, Nida, cujo entendimento da tradução parecia, à primeira vista, apresentar diferenças substanciais relativamente ao paradigma cientificista, por exemplo ao postular que a tradução deve afectar o público/alvo, do mesmo modo que o original afectou o público/fonte,() acaba afinal por não operar um tão grande distanciamento, restringindo-se a um postulado (um pouco absolutista e dogmático e, sobretudo, reduzido ao campo da Semântica) de que a tradução se "resolve" através do acto de "achar o equivalente mais próximo", de acordo com as suas palavras. Nida insiste, vendo-o como operação fundadora da tradução, tem ainda uma outra implicação, que deveremos igualmente sublinhar: a do entendimento das diferenças culturais como extremamente simplificadas e, sobretudo, equacionadas da mesma forma em toda e qualquer cultura (o que, de algum modo, as naturaliza.) Esta sua definição dá conta, assim, de um projecto em que "cultura" e "língua" se identificam e coincidem e, ainda, de um projecto em que se pressupõe que as várias culturas (e línguas) se organizam e manifestam de forma idêntica: só esta visão pode argumentar a sua defesa do encontro de um "equivalente natural".

As formulações teóricas de Nida podem assim integrar-se, como já foi referido, na moderna Tradutologia ou, como também é conhecida, "Ciência da Tradução", dado que a sua fundamental preocupação radica numa tarefa que privilegia a abordagem das chamadas "equivalências", em que o tradutor é chamado a manifestar a sua competência na interpretação da língua de origem e no tratamento da língua de chegada, interferindo nesse processo, de forma radical, a tarefa do cotejo do seu texto com o do original.

Assim, as "Ciências da Tradução" privilegiam o estudo da tradução a um nível isolado, e encaram a questão da "fidelidade" de forma essencial para a reescrita de um texto. Com efeito, as noções de "fidelidade" e "liberdade" desempenham uma importante função no âmbito da tradutologia, em que determinar as unidades de tradução e por outro lado seleccionar as equivalências possíveis a fim de escolher a ideal serão as tarefas predominantes. Também será verosímil argumentar, em relação a esta escola, que os processos de avaliação da mensagem do texto original decorrem sem tomar em linha de conta os dados circunstanciais históricos e diacrónicos. Sob este ponto de vista, trata-se de uma abordagem de inspiração essencialmente estrutural e sincrónica.

No nosso entender, os "Estudos de Tradução", tal como têm vindo a ser desenvolvidos por nomes como Itamar Éven-Zohar e Guideou Toury, em Israel, André Lefevre e José Lambert, na Bélgica, e Susan Bassnett, em Inglaterra, revelam-se na actualidade como o conjunto de tendências de maior valor e pertinência no âmbito da tradução, nomeadamente no que respeita à tradução literária. Esta escola radica a sua teorização no campo de estudos da tradução na "teoria dos polissistemas", essencialmente desenvolvida por Éven-Zohar() e subscrita mais tarde por discípulos como Gideon Toury. No entender de Susan Bassnett, esta teoria revela-se extremamente produtiva no âmbito dos "Estudos de Tradução", já que, desenvolvendo a hipótese de um polissistema literário, tal hipótese incluirá, por definição, também qualquer texto traduzido dentro de uma dada cultura e numa época determinada.() Um dos postulados fundamentais desenvolvidos por esta teoria, e no campo particular que aqui nos interessa, é o de que a actividade da tradução é social e culturalmente marcada (e, por isso, faz parte do polissistema literário): por exemplo, uma cultura marginal, nova e fraca tenderia a fazer mais traduções do que uma cultura forte, central e estável. Neste sentido, a análise da actividade da tradução permitiria equacionar uma série de problemas respeitantes às relações e posições mútuas dos dois sistemas literários postos em confronto pelo acto de traduzir.

Assim, a teoria dos polissistemas baseia a sua formulação numa perspectiva funcionalista, que propõe as noções de sistema e polissistema de uma forma não estática mas sim dinâmica (por aqui se distinguindo da noção de estrutura dos formalistas, dos quais recebe entretanto evidente inspiração), apoiando esta sua especificidade num jogo de relações:

"The idea that semiotic phenomene, i.e, sign-governed human patterns of comunication (such as culture, language, literature, society) could more adequately be understood and studied if regarded as system rather than conglomerates of disparate elements has become one of the leading ideas of one time in most sciences of men".()

Nesta sua asserção, Éven-Zohar estrutura as bases da sua teoria sistémica, na medida em que levanta a questão de os parâmetros da comunicação humana não se poderem separar ou existir independentemente um dos outros, já que mantêm relações entre si que ultrapassam o mero cruzamento acidental ou formal, constituindo assim elementos, integrantes de sistemas. Neste quadro, Éven-Zohar distingue a "teoria dos sistemas estáticos" da "teoria dos sistemas dinâmicos", enfantizando deste modo o carácter heterogéneo, dinâmico e relacional do polissistema, ao afirmar:

"[...] a semiotic system can be conceived of as an heterogeneous, open structure. It is, therefore, very rarely a uni-system but is, necessarily, a polysystem - a multiple system, a system of various systems wich intersect with each other and partly overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are interdependent".()

Deste modo, verificamos que a teoria de Éven-Zohar propõe uma erstrutura heterógena e aberta, o que obviamente estará na origem de intensões intrassistémicas (responsáveis pelo seu carácter dinâmico) entre aquilo que ele designa como canône ou núcleo e os elementos/sistemas que lhe são periféricos. O próprio entendimento do cânone é, assim, sempre relacional, o que terá implicações para a teoria da estratificação funcional: o valor ou a função nem sempre são os mesmos (orientação funcionalista) e são conformados a partir de uma luta para ocupar outras posições ou outras funções (dimensão dinâmica); também, como sustenta Éven-Zohar, o próprio polissistema é heterogéneo, o que sugere a coexistência de vários subsistemas (literários ou outros) potencialmente divergentes entre si e, por isso mesmo, com cânones ou núcleos e periferias próprias e igualmente diferentes entre si. Ao invés do carácter estático (sincrónico) dos elementos, preconizado pela noção de estrutura saussuriana, estes diferentes cânones e periferias mantêm relações tensionais entre si, na procura incessante do predomínio sobre os outros. Todo este processo é, segundo Éven-Zohar, pertinente para uma reflexão sobre a literatura traduzida,() uma vez que será também através de obras estrangeiras e traduzidas que novos modelos literários podem ir sendo estabelecidos e que um novo repertório vai incessantemente sendo (re)elaborado:

"To say that translated literature maintains a central position in the literary polysystem means that it participates actively in shaping the center of the polysystem. In such a situation it is by and large an integral part of innovatory forces, and as such likely to be identified with major events in literary history while this are taking place. This implie that in this situation no clear-cut distination is maintained between "original" and "translated" writings, and that often it is the leading writers (or members of the avant-garde who are about to become leading writers) who produce the most conspicuous or appreciated translations. Moreover, in such a state when new literary models are emerging, translation is likely to become one of the means of elaborating the new repertoire. Through the foreign works, features (both principles and elements) are introduced into the home literature which did not exist there before".()

Nesta medida, assistimos a uma significativa alteração de pressupostos no entendimento da tradução literária e da literatura traduzida: tradicionalmente remetida para as "margens" do que se definia como uma literatura nacional, ela é aqui reconformada não só como fazendo parte integrante do sistema mas, até, como estabelecendo relações dinâmicas tanto com a definição do repertório como com o próprio centro canónico do sistema. É claro que esta alteração de pressupostos implica, evidentemente, uma diferente valoração da literatura traduzida, que passa a ser concebida como um subsistema que, por direito próprio, ganha em ser entendido como fazendo parte do sistema literário.

A argumentação de Éven-Zohar, nesta medida, permite formular uma hipótese bastante verosímil e interessante no que respeita ao polissistema cultural e também ao polissistema literário, o que leva João de Almeida flor a sustentar:

"O ponto de partida consubstancia-se na hipótese formulada por Itamar Éven-Zohar segundo a qual a literatura de uma dada cultura em determinado momento histórico constitui um sistema de sistemas - um polissistema - que inclui desde os textos canónicos aos paraliterários, um espaço dinâmico onde qualquer tradução adquire posição primária ou secundária, consoante é portadora de dinâmicas de ruptura e instauração de novos modelos, ou, pelo contrário, se limita a assegurar a continuidade de valores estabelecidos e institucionalizados".()

Tal concepção do texto traduzido como inserido num polissistema no interior do qual ocorrem lutas e tensões para das periferias se chegar aos centros canónicos, num movimento de incessante intercâmbio e até substituição, que permite o estabelecimento de novos parâmetros culturais e sociológicos, reflecte sem dúvida uma dinãmica de inovação e de renovação a estes níveis, mas não só; de facto, interfere também ao nível de uma multiplicidade de elementos, objecto de estudo das disciplinas históricas, críticas e comparativistas. O produto traduzido é assim equacionado como elemento integrante de uma cultura receptora que, por sua vez, deverá incluir diversos dados operantes de carácter estético, social, económico, político, e outros: numa palavra, de carácter cultural.

É por isso que esta área de estudos pode também ser definida como tendo uma orientação culturalista, na medida em que, deste ponto de vista, e em última análise, o "sistema de sistemas" que a cultura é integra também, como seu elemento próprio, a actividade e os produtos da tradução. E estes passam, pois, a ser encarados como manifestações que, linguisticamente operadas, conformam uma série de elementos que apenas a perspectiva culturalista estará habilitada a entender como objecto de estudo. É neste sentido que estudiosos como Susan Bassnett e André Lefevere defendem que se trata, afinal, de efectuar "a cultural turn in the translation studies".

De facto, convém salientar a natureza deste tipo de estudos, em que é posto de parte qualquer tipo de abordagem isolacionista do texto traduzido, para pelo contrário dele se falar em termos histórico-culturais, ou seja, averiguar em que medida as traduções são elementos de criação literária e em que medida concorrem para alterações das dimensões literária, estética e até ideológica do sistema; ou seja, em que medida se constituem como fenómenos culturais que se integram em (ou são por eles rejeitados...) e transformam os repertórios existentes e canonizados num dado momento. Susan Bassnett propõe por esta razão a designação de "Estudos Interculturais"() como ponto de convergência entre os "Estudos de Tradução" e os "Estudos Literários". Tal designação insere-se com evidência nas propostas apresentadas essencialmente por Éven-Zohar e Gideon Toury, decorrendo de uma reflexão que é devedora dos pressupostos atrás analisados.

Por outro lado, o último estudioso referido alega que o produto ou a tradução de um texto literário não ocupa necessariamente a mesma posição no sistema literário-alvo que o original ocupava no sistema literário fonte, mesmo que os dois sistemas estejam organizados segundo parâmetros similares de géneros, tendências, escolas e mesmo línguas.() De facto, e em virtude de o factor relacional, a que já fizemos referência ao expor as propostas teóricas de Éven-Zohar, ser um dado crucial a ter em conta na conformação dos polissistemas, cremos que assim existirá, com ele, um importante elemento de mudança dentro do próprio polissistema; com efeito, através da consideração deste elemento, e pelo facto de ele atingir o confronto elemento/elemento quer o confronto elemento(s)/sistema, pode inferir-se que o polissistema - neste caso, literário - está sujeito a constantes mudanças que o tornam intrinsecamente dinâmico. Isto significa ainda que o factor "mudança" deixa de ser considerado acidental e extrassistémico e passa a fazer parte da própria conjutura intrassistémica.

A este mesmo facto acresce que, mais importante ainda do que o sistema-fonte, segundo Toury, se revela o sistema-alvo, no âmbito dos Estudos de Tradução. Assim, alega Toury, na tradução literária torna-se fundamental a compreensão e explanação do fenómeno tradutológico no âmbito do sistema literário, em que se impõe como crucial o sistema-alvo.() Será neste caso que haverá uma interia "(re)-composição" do texto-fonte em função do sistema literário-alvo.

Também Susan Bassnett reitera a opinião de Lefevere sobre a recomposição do texto-fonte, a que este estudioso dedicou particular atenção, designando-o como o conceito, de complexa elaboração e amplas possibilidades epistemológicas, de "reescrita":

"Translation is, of course, a rewriting of an original text. All rewritings, whatever their intention, reflect a certain ideology and a poetics and as such manipulate literature to function in a given society in a given way. Rewriting is manipulation, undertaken in the service of power and in its positive aspect can help in the evolution of a literature and a society".()

A esse propósito, Vasco da Graça Moura, afirma:

"[...] Ora, numa noite de princípios de Fevereiro de 1974, surgiram-me de repente, e sem que eu estivesse a pensar sequer nesse ou em qualquer outro dos sonetos, o primeiro verso e logo os quatro primeiros versos, de uma versão do soneto CXXX em português. O resto foi bem rápido. Tão rápido que, nesse mesmo mês de Fevereiro de 1974, acabei por traduzir 35 sonetos ... Normalmente pegava na colectânea e ia lendo e relendo, até que se me desencadeava em português a forma inicial dos textos de que depois, com alguma minúcia e bastante liberdade, procurei encontrar o equivalente na nossa língua; ou que, para usar uma bela expressão de Carlos de Oliveira, procurei reescrever em português".()

Susan Bassnett refere assim o conceito de "manipulação de uma tradução (postulado já por Theo d'Hermans em 1985): a tradução, tal como outras formas discursivas, como o criticismo, do âmbito da "reescrita", desencadeia fundamentalmente processos de manipulação de um texto, deslocando o foco de atenção principal para a "fortuna" de um dado texto na Cultura de Chegada, e passando assim para segundo plano o texto-fonte e todo o seu "background" cultural. Assim, Susan Bassnett() e André Lefevere argumentam essencialmente que a actividade da tradução é um dos vários processos de manipulação textual e literária, em que os textos são reescritos em função de um conjunto de parâmetros heterogéneos entre si, tais como, para além das linguísticas obviamente, os culturais e históricos, que integram o sistema literário no polissistema cultural a que também pertence a língua de chegada.

Considerada desta forma, a tradução ("reescrita") torna-se uma forma de manipulação do texto-fonte por parte do tradutor, podendo proporcionar a introdução de novos conceitos, novas ideias, novos instrumentos de trabalho e novas formas literárias na cultura-alvo.

Segundo André Lefevere, a "reescrita" poderá constituir o motor do fenómeno da evolução literária.() Assim, o leitor não profissional faz grande parte das suas leituras não através das obras originais propriamente ditas, mas através da "reescrita" feita pelos "reescritores", reescrita essa que Lefevere tem o cuidado de caracterizar como podendo assumir várias formas, desde sumários em histórias literárias até representações no palco e, "last but not least", traduções. Os "reescritores" ocupam, pois, um lugar (que acaba por ser central, dada a sua diversidade e a multiplicidade de posições em que se encontram) no âmbito de um determinado sistema literário, agindo por isso, em concomitância com os demais segundo elementos do sistema, na conformação e deformação das várias dominantes, entre as quais Lefevere sublinha a dominante ideológica e a poetológica:

"Whether they produce translations, literary histories or their more compact spin-offs, reference works, anthologies, criticism or editions, rewriters adapt, manipulate the originals they work with to some extent, usually to make them fit in with the dominant, or one of the dominant ideological and poetological currents of their time".()

Deste modo, a literatura traduzida assume um papel fundamental pela introdução de determinadas obras numa cultura-alvo, mas também pelo facto de o seu papel dinãmico nesta cultura ultrapassar em muito o impacto que uma determinada obra conheceu. Neste campo, assume particular relevância a distinção conceptual entre "Literatura Traduzida" e "Tradução literária" que, embora impliquem conceitos cuja correlação é óbvia, não são exactamente coincidentes, nomeadamente pelo facto de a Literatura traduzida implicar sempre as circunstâncias "culturalizantes" que a situam, histórica, social e literariamente, e que por isso a caracterizam:

"Since translation is the most obviously recognizable type of rewriting, and since it is potentially the most influential because it is able to project the image of an author and/or a (series of) work(s) in another culture, lifting that author and/or those works beyond the boundaries of their culture of origin, four chapters of this book will be devoted to the study of translated literature.()

Desta forma, um texto é reescrito em função de postulados de adaptabilidade relativamente à literatura-alvo, embora aqui seja ainda de reter que, devido ao facto de o sistema literário comportar vários sub-sistemas não de todo coincidentes, e até potencialmente divergentes, o seu funcionamento no sistema-alvo é também ele heterogéneo, conforme a posição (mais central ou mais periférica) que vier a ocupar. É por este conjunto de razões que a reescrita pode ser considerada como uma manipulação do texto original que o transforma em Literatura Traduzida no âmbito de uma determinada Cultura-Alvo. A tónica deve aqui ser colocada, mais uma vez, no processo dinâmico de transformação, que afecta a função e o valor do próprio texto.

Numa linha semelhante Lawrence Venuti analisa no seu trabalho() a situação que o tradutor assume, de forma mais comum, no mundo ocidental: essa situação consubstancia-se, segundo ele, na noção de "invisibilidade", metáfora a nosso ver muito significativa no contexto, e sobre a qual nos debruçaremos seguidamente.

De facto, Venuti demonstra que os critérios maioritariamente comuns para que uma tradução seja considerada "boa" ou pelo menos "aceitável" por um conjunto de agentes do sistema literário, entre os quais por exemplo editores e leitores, se pautam pelo carácter de "transparência" e potencial invisibilidade dos agentes e processos de manipulação/reescrita/tradução, numa tentativa, afinal, de manutenção do que seria a personalidade do escritor (dimensão expressiva) ou a "essência" textual (dimensão imanente). Ou seja, virtualmente uma tradução seria boa se, em última análise, não "parecesse" uma tradução, mas sim o próprio original. Esta concepção da invisibilidade do tradutor está em completa oposição, segundo Venuti e outros críticos, e também no nosso entender, com o conceito de "manipulação" e "reescrita" subscrito nomeadamente por Lefevere e Susan Bassnett, como vimos. Com efeito, diz Venuti:

"Under the regime of fluent translating, the translator works to make his or her work "invisible", producing the illusory effect of transparency that simultaneously masks its status as an illusion: the translated text seems "natural", i.e., not translated".()

De facto, esta invisibilidade do tradutor, que Venuti diz ser predominante nomeadamente na Cultura Anglo-Saxónica (mas que, sem grande dificuldade, nós podemos considerar extensiva à generalidade da cultura ocidental), encontra-se dissociada daquilo que Venuti designa, de forma clarividente, como "factores transindividuais",() como sejam os de natureza linguística, cultural, social que, no fundo, problematizam e complexificam qualquer tipo de originalidade autoral. De facto, a transparência e tendencial invisibilidade do tradutor estão na base do contínuo desmerecimento e até desvalorização do trabalho do tradutor, que vemos normalmente ser considerado como marginal (e quase como "dispensável"), já que o procedimento ideal, neste contexto, seria o de que o texto traduzido fosse uma "cópia" do texto original, mas noutra língua. Este factor acarreta ainda equívocos ao nível da recepção, porque o leitor-alvo tenderia a ler o texto traduzido "como se" fosse o texto original, eliminando o trabalho de transformação e de diferença ecfectiva. Esta invisibilidade do tradutor representa, pois, no dizer de Venuti, uma espécie de "auto-aniquilação", no sentido de que confirma e faz arreigar o preconceito relativo à tradução, segundo o qual ela continua a ter um estatuto marginal no âmbito da concepção que fazemos do sistema literário.

No parecer de Venuti, esta invisibilidade e transparência do texto-alvo manifestam-se no facto de um dos critérios comumente utilizados para averiguar do valor de uma tradução ser o da sua fluência,() que designa, na maior parte dos casos, o apagamento produzido. No entanto, e como já tivemos ocasião de referir, esta concepção opõe-se totalmente ao conceito de manipulação que preside à introdução de inovações literárias numa cultura-alvo, implicando afinal o reconhecimento do carácter mediador da tradução e do agente que a protagoniza - papel que o tradutor deve representar plenamente ao assumir o que é, em última análise, a sua função de intérprete:

"Translation is a process by which the chain of signifiers that constitutes the source - language text is replaced by a chain of signifiers in the target language which the translator provides on the strength of on interpretation".()

Colocado o problema desta forma, efectivamente, é possível sublinhar o entendimento da tradução como um processo de natureza fundamentalmente substitutiva, pelo qual as diferenças linguísticas e, de forma mais lata, culturais são equacionadas de forma operativa, isto é, fazendo com que o texto se torne inteligível para o leitor da língua-alvo. Esta inteligibilidade não é, no entanto, de carácter exclusivamente linguístico predominando, como dissemos, o seu entendimento culturalista.

De acordo com Lefevere, existem dois factores que determinam basicamente a imagem de uma obra literária apresentada através da tradução. Um desses dois factores residirá na ideologia do tradutor, enquanto o outro será o carácter da poética dominante no sistema literário de recepção.() A propósito deste aspecto falaremos pormenorizadamente mais adiante. Mas torna-se desde já evidente que esta "ideologia" do tradutor se encontra em sintonia com a concepção que estes críticos têm da tradução como Manipulação e não como invisibilidade do tradutor (sendo que esta última situação nos parece, já o referimos, ser reducionista e marginalizadora relativamente ao papel do tradutor como efectivo agente do sistema literário).

De facto, na perspectiva de estudiosos Russos e búlgaros actuais() e na sequência de reflexões produzidas pelas escolas semióticas eslavas,() o Tradutor desempenha um papel fundamental como "interventor" social, em perspectiva que se coaduna perfeitamente com as posições assumidas pela generalidade dos teóricos dos "Estudos de tradução". No entanto, julgamos que as reflexões desenvolvidas a partir da teoria dos polissistemas podem ainda ser iluminadas pelo confronto com conceptualizações de origens diversas, que problematizam o papel da tradução como "intervenção" num determinado sistema literário.

De facto, os "estudos de tradução" terão necessariamente que implicar essas perspectivas, mas também se justifica, no nosso entender, a atenção ao processo que, nas palavras de Mary Swell-Hornby, se designa por "Holismo",() ou seja, uma visão totalizante e multifacetada da tradução.

Também de acordo com os críticos que têm vindo a renovar os estudos de tradução, as antigas categorias dicotómicas, manifestadas pelo acto de "traduzir palavra-a-palavra" e pelos tipos formais e rígidos de equivalências, terão de ser subvalências, terão de ser substituídas por um princípio holístico. Nesta perspectiva, entende-se que a língua manifesta uma estrutura multidimensional e estratificada, integrando uma tensão dinâmica de forças aparentemente contraditórias, e que tal versão não só transparece em todo o processo de tradução como, de certa forma, até o fundamenta: assim, torna-se necessário realizar a crítica do princípio de tradução de "palavras isoladas".()

Desta forma, e no nosso entender, o conceito de tradução deve pautar-se pela situação in texto (contextualização) como parte integrante do "background" cultural; será nesta base, e tendo como pano de fundo o macro-sistema cultural - no âmbito da teoria dos polissistemas -, que a análise de um texto se efectua: a partir de uma macro-estrutura textual que se orienta em direcção à micro-unidade da palavra;() esta perspectiva deverá ser encarada não como um item isolado, mas como etapa, fundamental e funcional no âmbito da actividade de tradução.

Verificamos, pois, que neste sentido a metodologia proposta defende que o processo analítico deve partir do todo para as partes, de um Macrossistema para um Microssistema.

Esta perspectiva inviabiliza que o texto seja encarado como uma entidade linguística estática; ele deve ser antes visto como a expressão verbalizada da ideologia do tradutor, o qual é primeiramente reconhecido como um leitor/intérprete privilegiado que, depois, irá manipular todo este conjunto de elementos, heterogéneos e multidimensionais, no sentido da sua re-orientação em direcção a uma outra audiência e uma outra cultura. O tradutor funcionará então como elemento de transferência, catalizador, simultaneamente receptor e reemissor (como reescritor) do texto original e, em última análise, da própria cultura, tal como é manifestada naquela produção discursiva.

É neste sentido que Mary Small-Hornby faz também activar aquilo que já era uma nítida orientação dos "Translation Studies": a tradução como um processo culturalmente orientado,() o que implicará a sua consideração como processo de natureza pluridisciplinar, como aliás pretende também Susan Bassnett,() incluindo cruzamentos disciplinares com áreas como a psicologia, a etnologia, a filosfia e outras.

Embora à partida Snell-Hornby se demarque de um entendimento restrito da escola da Manipulação, o certo é que os conceitos que ela propõe, tais como o de tradução enquanto "evento intercultural", se podem integrar no ideário da escola de Manipulação, na medida em que o princípio do polissistema literário se fundamenta igualmente nas tensões internas entre sistemas "primários" e sistemas "secundários"; assim os elementos (e textos) primários são os inovadores, os que introduzem no polissistema literário uma dinâmica de alterações consubstanciada em elementos ideológicos, temáticos, técnicos semântico-pragmáticos, dinâmica essa tanto mais visível quanto manifesta, também, a sua decorrência de um "evento inter(ou trans)cultural"; - ou, por nossas palavras, se colocar como um processo de transculturação, baseado em tensões internas e constantes no âmbito do polissistema literário. Assim, as traduções, entendidas como "reescritas", poderão desempenhar um papel nuclear em todo este processo, porque nelas se manifesta uma dinâmica de inovações dentro dos sistemas literários, que assim são colocadas em relação.

Neste estudo, que constitui apenas um contributo para os "Estudos de Tradução", abordam-se ainda as "Ciências de Tradução" a que não negamos valor, dado que têm o mérito de procurar clarificar e sistematizar técnicas como instrumentos de que o tradutor se pode e deve socorrer para a resolução de certos problemas que no seu trabalho inegavelmente existem e constantemente surgem.

De qualquer maneira, o contributo adiantado pelos "Translation Studies" revela-se, entretanto de extrema importância, pela adequada reflexão que permitem em torno do problema da evolução cultural e literária bem como, e mais concretamente, pelo facto de defenderem a impossibilidade de deslizar o problema do sentido da sua contextualização pragmática e cultural. Nesta perspectiva, tal contextualização passa a ser entendida como um acto de aculturação, de interpretação de visões do mundo, de "Weltanschauungen", face às quais se torna necessária uma abordagem interpretativa ou hermenêutica, a fim de que possam ser efectivamente objecto de transposição ou "transculturação".

Neste sentido, esta nossa abordagem privilegia uma dimensão totalizante e cultural do processo da tradução, e é neste mesmo sentido o que concebemos como uma área multidiscipliniar, já que terá, neste perspectiva, de integrar referências históricas, sociais, filosóficas e outras.

De acordo com a terminologia que Lefevere propõe na sua obra,() falaremos aqui da ideologia do tradutor ao reescrever um texto original e centraremos a nossa atenção neste factor, que consideramos fundamental na tradução. De facto, ela não deve nem pode ser ignorada e tornar-se-á verdadeiramente central, quando abordamos a tradução na perspectiva interpretativa de transculturação.

Na realidade, o tradutor, quando realiza o seu acto de tradução e justamente porque participa, enquanto elemento e agente, do sistema literário, encontra-se envolvido por factores vários que condicionam a sua posição, e que Venuti designa como ideologia, incluindo factores de ordem muito diversa, por exemplo os que aparentemente dependem de uma vontade ou ordem que lhe é exterior, como seja, muito concretamente, o caso de um editor que o contrata para transladar um determinado texto, esperando dele a "invisibilidade" e "transparência" de que Venuti nos fala.()

Por outro lado e como se torna óbvio, esta ideologia do tradutor prende-se também com o tipo de texto a traduzir (condições genelógicas, periodológicas) e perifericamente, com o maior ou menor grau da sua manipulação do texto bem como com a maior ou menor cosnciência que vem de tal processo.

Em terceiro lugar, ela prende-se ainda com o tipo de texto a produzir ou "reescrever", para utilizar os termos de Lefevere, ou seja, com o conjunto de efeitos (pragmáticos e/ou estéticos) que estão no horizonte do acto de tradução em que ele se encontra. Em síntese, seria possível dizer que a conformação do acto da tradução e da ideologia do tradutor depende do tipo de conjunção efectuada entre elementos que provêm tanto da emissão anteriormente realizada como do texto produzido e da recepção projectada.

De todas estas considerações, poderemos sintetizar a tarefa da tradução em três pontos que nos parecem fundamentais: em primeiro lugar a "intenção" do tradutor, em segundo lugar o tipo de texto a traduzir, em terceiro lugar o texto a reescrever. A primeira hipótese colocada e a seguinte revelam-se a nosso ver como as nucleares, enquanto as últimas duas parecem-nos ser eventualmente mais como marginais ou periféricas.

1 - O tradutor opta por privilegiar uma "afectação do público-alvo" de um modo que pretende semelhante à relação que o original estabeleceu com o público-fonte (público-alvo do original, entenda-se), caso em que o seu texto (tradução) se realiza com base na possibilidade de transculturação relativamente ao texto-fonte, a fim de que ele se torne perceptível, de modo pretendido, pelo público-alvo (note-se que, neste caso, haverá uma fidelidade relativamente ao funcionamento estético e social do texto que no entanto tenderá a manifestar-se como afastamento relativamente à cultura-fonte, que pode até sofrer um processo de relativo "apagamento"). Digamos que este é o tipo a que João de Almeida Flor dá o nome mais comum de "tradução literária"() por oposição a "Literatura Traduzida".

2 - O tradutor opta por "apresentar" um texto/autor/cultura/mentalidade inéditos, tendo como intenção predominante produzir um efeito - outro sobre o público - alvo, por exemplo chocar, alertar, culturalizar, num acto pedagógico e até educativo, através da manifestação e explicitação da distância cultural que o texto em questão apresenta relativamente ao seu novo contexto de recepção. Este é também um "acto de transculturação" mas no sentido da cultura/alvo. De facto, o tradutor neste caso assume-se sobretudo como transmissor de Cultura (incluindo o texto em si), privilegia a noção de diferença e não considera ser necessário adaptá-la deliberadamente à compreensão do público-alvo, como realidade imediatamente perceptível. Neste caso ele assume também um papel manipulador, mas que se conforma sobretudo em torno da inclusão de um texto "diferente", de um sistema literário diferente, no sistema-alvo, privilegiando assim a possibilidade de aculturação do público-alvo.

Como exemplos deste tipo de opção de tradução dispomos de traduções de grandes obras e grandes autores de uma grande civilização: por exemplo, textos como a Ilíada e a Odisseia de Homero. Esta hipótese será a que se salientará de forma indiscutível naquilo que os críticos como Lefevere e, em Portugal, Almeida Flor designam por "Literatura Traduzida" e também como posição que se revelará da análise fundamental ao longo do nosso trabalho, já que, como veremos, parece ser maioritariamente o caso por exemplo da tradução do "Fingal" de Ossian por Maria Adelaide Fernandes Prata. Nesta perspectiva, tal opção centrar-se-á ainda na Cultura-Alvo (Target), objecto principal de estudo dos críticos da área dos "Translation Studies". Esta atitude tem também uma grande importância, já que este tipo de tradução vai permitir introduzir no sistema literário formas estéticas culturais e mentais até aí ignoradas, marginalizadas ou até mesmo consideradas como "exóticas" por esse mesmo sistema, de tal forma que estes novos textos reescritos tenderão a entrar em tensão com outros fazendo parte do núcleo do sistema, na medida em que implicam, regra geral, uma profunda alteração dos mecanismos e manifestações da ideologia() que consigo carregam.

É pois significativo, neste contexto, o reconhecimento de que este processo se centra no sistema literário e cultural-alvo, pois segundo a perspectiva defendida pelos críticos dos "Translation Studies" é neste âmbito que a fortuna de um texto pode ser equacionada, permitindo assim a análise do seu funcionamento na cultura de chegada. Esta opção revela-se, pois, de uma grande importância, na medida em que permite estudar as relações e as diferenças entre os dois sistemas de que a tradução continua, em certa medida a fazer parte: porque pretende manter, de forma muito clara, a sinalização do sistema literário-fonte e porque pretende inserir, no sistema-alvo, mecanismos que levem à inclusão dessa diferença.

A terceira opção revela-se como mais marginal ou periférica para o nosso estudo, não se enquadrando nem no domínio da "Tradução Literária", nem no da "Literatura Traduzida", mas pelo contrário surgido como factor relacionável com a tradução técnico-científica.

3 - O tradutor tem como intenção, atendendo sempre à natureza do texto a traduzir, não se afastar minimamente da terminologia do mesmo, sob pena de induzir em erro o público-alvo, privilegiando assim uma adesão que exclua a possibilidade de erros que se podem revelar de grande alcance (textos científicos, como em Medicina, com traduções de bulas de medicamentos, Informática, Física, Direito e, no geral, as chamadas linguagens científicas ou técnicas).

Numa tentativa de abordagem sintetizada destas três posições fundamentais, convém fazer uma ressalva: qualquer destas opções tomadas pelo tradutor poderá ser válida e revelar-se pertinente, desde que lhe esteja subjacente a manifestação do conjunto da ideologia e dos princípios de tradução que a orientaram e lhe serviram de critério.

É neste sentido que se pode revelar perigoso e porventura precipitado afirmar que uma tradução é "boa" ou "má", sem explicitação dos parâmetros ou critérios que estão implicados por esta observação. Como vimos, tudo dependerá da ideologia do tradutor, do tipo de texto a traduzir e do tipo de texto a produzir/reescrever.

O que na realidade se torna necessário é fazer um ajustamento ou adequação de critérios, já anteriormente apreendidos e consciencializados, ao texto "in-texto" (em situação).

É neste registo que o papel do tradutor adquire uma perspectivação holística ou totalizante, na medida em que é de facto ele que detém o maior ou menor poder de flexibilização e adequação ao texto "em situação", é ele o agente dos procedimentos da sua manipulação e é afinal também ele que, pela sua posição interpretativa e hermenêutica, afecta e condiciona estratégias de produção e até, recepção do texto traduzido.

Neste sentido, torna-se claro que se por um lado não podemos ignorar como necessários os processos e técnicas de que o tradutor se deve socorrer para o acto de traduzir e para encontrar procedimentos de "aproximação" na língua-alvo, por outro também não nos é lícito deixar de lado toda a ideologia e as estratégias "manipulativas" do tradutor. Ambos têm de ser tomados em linha de conta para uma compreensão coerente do trabalho realizado, ao lado também dos elementos que manifestam quais os critérios, princípios e objectivos em acto na tradução.