Isabel Branco de Mascarenhas
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A PROBLEMÁTICA DO SONHO NA LITERATURA

A universalidade do sonho e o seu carácter enigmático. A relação sono/sonho  e a especificidade do psiquismo onírico. O sonho como espaço de experiências excepcionais.

O carácter redutor das leituras psicanalíticas do sonho.

Os aspectos recorrentes do universo onírico: A viagem de navegação, o percurso por um labirinto, a queda, o voo e a ascensão como formas privilegiadas da encenação onírica.

A estilização e a luminosidade difusa do cenário onírico.

A atmosfera onírica e sua intensidade emotiva.

As funções literárias do sonho da Antiguidade à época contemporânea.

O onírico como suporte da literatura fantástica.

Sonho e poesia - semelhanças e contrastes.

 

Introdução

 

O trabalho que vamos apresentar resulta da leitura da introdução à obra de Jean Pierrot de Rêve - de Milton aux Surréalistes, obra onde o autor aborda diacronicamente a problemática do sonho na literatura, estudo que se encontra dividido nos seguintes momentos históricos:

- Da Idade Média ao século das Luzes;

- A época romântica;

- De Baudelaire à Decadência (1850 - 1900);

- A época surrealista.

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A atenção do autor recai sobretudo sobre a literatura francesa não deixando, no entanto, de fazer referência a autores da literatura inglesa, alemã e mesmo americana. Aos exemplos apresentados pelo autor, decidimos acrescentar alguns da literatura portuguesa atendendo à sua pertinência quer quanto à temática, quer quanto ao âmbito dos estudos do presente seminário.

Nesta introdução a que Jean Pierrot atribuiu o título «Les Problèmes du Rêve» são apresentadas em síntese as principais questões que se colocam à problemática do sonho desde a concepção do sonho (fenómeno psico-fisiológico ou manifestação das potencialidades da imaginação), à controvérsia que se tem levantado em torno da interpretação do sonho e ainda à especificidade do onírico na literatura. Este ensaio, mais do que um estudo aprofundado da relação e presença do sonho na literatura, é, acima de tudo, o levantamento das constantes ou aspectos recorrentes que a experiência onírica tem assumido ao longo dos tempos no texto literário.

Antes de terminarmos este pequeno preâmbulo, não queremos deixar de sublinhar o que para Jean Pierrot é o aspecto mais interessante e marcante do sonho. Referimo-nos ao carácter enigmático, misterioso que envolve qualquer vivência onírica, questão que nem mesmo os estudos da ciência moderna têm conseguido deslindar. O conhecido quadro do pintor surrealista René Magritte (1898-1966) La Reprodution Interdite de 1937, sugere o mistério e a decorrente impressão de estranheza que envolve o sonho. O espelho cujo simbolismo está ligado à gnose (especular, do termo latino speculare, era na sua origem observar o céu, as estrelas, o movimento dos astros com a ajuda de um espelho) conduz à reflexão, palavra esta também ela associada ao espelho como superfície que reflecte o sujeito que o observa e nele busca resposta para o oculto, para o mistério. Mas a forma como se exprime esse processo gnóstico é também ela enigmática devido à ambivalência da linguagem simbólica. Daí a figura do duplo que, em vez de desvelar, oculta provocando inquietação e meditação em quem o contempla.

É também sobre o enigma que envolve o sonho que Fernando Pessoa ortónimo se interroga: «Porque é que um sonho agita/ Em vez de repousar/ O que em minha alma habita/ E a não faz descansar?». Para o poeta, o sonho desperta o que "habita" a alma contribuindo, assim, para a autognose mas, simultaneamente, provoca inquietação, ambiguidade esta sugerida pela efeito de agitação atribuído ao sonho.

 

A Problemática do Sonho

O autor inicia o seu trabalho apresentando as questões que, na sua opinião, justificam a pertinência do ensaio - a universalidade do sonho e o seu carácter enigmático.

A experiência do sonho é universal no tempo como está comprovado por alguns dos textos mais antigos que se conhecem, como um texto da XII ª Dinastia egípcia, que relatam experiências oníricas bem como as interpretações que lhes foram atribuídas. O sonho é ainda universal no espaço e ao nível das civilizações. Longe de ser um apanágio do Ocidente, o sonho provocou o desenvolvimento de uma literatura relevante no Extremo Oriente, em particular na Índia e na China. A sociologia moderna tem posto em evidência a importância do papel do sonho na mentalidade das sociedades ditas primitivas tendo daí germinado toda uma sociologia do sonho que tem como intuito destacar as constantes e variantes da experiência onírica nas diferentes culturas.

A título de exemplo, apresentamos a lenda ancestral da região da Amazónia Sonho de Jacaré com aproximações evidentes à aventura bíblica de Jonas:

- Sonhei com um jacaré - disse, um dia, um homem ao levantar-se da cama.

- Sonhei que estava a andar numa praia e que encontrei um grande ovo de jacaré. Comi-o. Agora estou com medo de que o jacaré me venha comer!

- Não sejas louco - disse o irmão - Os jacarés são pessoas como nós. Não te vai comer!

Chegada a noite o irmão disse:

- Vamos pescar.

- Não - disse o homem - Tenho medo do jacaré. Mas o irmão insistiu.

Os dois homens foram até ao rio e começaram a pescar na praia. Então, um grande jacaré emergiu das águas, apanhou o homem e engoliu-o, bem como ao seu arco e flechas.

Quando estava na barriga do jacaré, o homem disse:

- Estou faminto e não há nada para comer. Tenho sede e não há nada para beber. Gostaria de ver luz e está escuro aqui dentro.

Nessa altura, ouviu o grito de um macaco.

- Se os macacos estão a gritar - disse ele - é porque é dia.

Agarrou na flecha e começou a golpear a barriga do jacaré pelo lado de dentro. O jacaré saiu do buraco e disse:

- Quem é que me está a esburacar desta maneira?

O homem continuou a golpear e o jacaré começou a correr por todos os lados do rio. Tossiu com tanta força, que teve que abrir a boca. Rapidamente, o homem colocou-lhe uma seta entra as maxilas para que elas não se fechassem e saltou para fora. Caiu na praia, meio-morto.

Nessa noite, acordou e voltou para casa.

Em ambos os textos é relatada a prova iniciática da deglutição por um monstro, a viagem ao mundo das trevas, ao abismo. No entanto, se confrontarmos esta narrativa com a aventura de Jonas, encontramos variantes simbólicas decorrentes do seu ambiente cultural e geográfico. Segundo Mircea Eliade a deglutição por um monstro representa o «mistério de morte e ressurreição simbólicas». A entrada no ventre do monstro simboliza a morte iniciática. Como refere o mesmo estudioso, «o desaparecimento do homem no crocodilo simboliza a iniciação» cujo percurso corresponde à passagem das trevas à luz, à passagem de um estado inferior a um estado superior. Se atendermos à simbólica da voracidade do crocodilo ou jacaré como representação da noite que devora interminavelmente o dia estando, assim, associada à cadeia simbólica fundamental das forças que comandam a morte e a ressurreição, podemos depreender que o percurso do índio como iniciado é também ele interminável. Tal aspecto é-nos sugerido pelo sonho premonitório da personagem que come um ovo de jacaré encontrado na praia. O ovo desempenha em várias cosmogonias a imagem da totalidade que sucede ao caos e ainda a imagem da renovação periódica contendo, portanto, em si a ideia de retorno, repetição. Antevendo o fenómeno de transformação iminente que se ia dar em si pela deglutição pelo monstro, o índio mostra-se naturalmente receoso e abdica da acção, isto é do progresso, recusando partir para a pesca. Como qualquer neófito, o índio é introduzido no seu percurso por um guia, papel desempenhado neste contexto pelo irmão que tenta apaziguar os seus temores. No rito de passagem no interior do ventre do monstro, como em qualquer outra catábase, opera-se uma metamorfose no iniciado que, depois de ter reintegrado um estado preformal, embrionário, regressa à luz, à vida tendo passado por um processo de purificação. À primeira vista parece que os processos adoptados pelo índio e por Jonas ao lutarem contra as trevas são bem diferentes - o índio utilizando o seu arco e flechas, Jonas dirigindo uma prece lancinante ao Senhor, seu Deus. No entanto, se atendermos à carga simbólica da flecha, verificamos que esta está próxima da oração em termos significativos. A flecha como imagem do destino, símbolo de luz e verticalidade, representa a resposta de Deus às interrogações do Homem. Segundo Bachelard, a flecha simboliza o dinamismo ascensional, o impulso humano dirigido ao transcendente tal como a oração é fruto de uma atitude extática que visa o contacto com o sagrado.

Enquanto no mundo das trevas, o índio debate-se não só contra a escuridão mas também contra a fome e a sede, isto é contra a sua aniquilação. O que o faz reagir à destruição é o grito do macaco que lhe lembra que é dia, que o regresso à vida é possível. A figura do macaco possui uma carga significativa ambivalente. Por um lado representa a consciência que o homem possui daquilo que deve banir em si mesmo como a vaidade ou a superficialidade mas, por outro, representa a faceta industriosa do ser humano, a sua criatividade. Neste texto parece ser o grito do macaco que impulsiona o índio a reagir libertando-se do abismo através da suas capacidades criativas como foi o caso da colocação da seta entre as maxilas do monstro.

Antes de terminarmos a abordagem desta lenda da América Latina, cremos que é de focar a construção da narrativa como sonho dentro do sonho, estrutura que se insere no que André Guide apelidou de mîse-en-abyme. Sonhando, o índio sonha que comeu um ovo de jacaré e que nessa noite é engolido pelo monstro. Mas é nessa noite que "acordou e voltou para casa". Temos, portanto, uma construção circular representada pela passagem do dia à noite que antecede um novo dia bem como pela imagem do engolidor que é simultaneamente engolido tal como acontece com a figura alquímica de Ouroboros, serpente ou dragão, símbolo de um ciclo evolutivo fechado sobre si mesmo. Esta imagem encerra simultaneamente as ideias de movimento, continuidade, auto-fecundação e, consequentemente, de eterno retorno. A forma circular tem dado também lugar à interpretação da união do mundo ctónico (figurado pela serpente ou dragão) com o mundo celeste (figurado pelo círculo). A ideia de renovação perpétua do tempo é também abordada por T. S. Eliot (1888-1965) quando diz: «Time present and time past/ Are both perhaps present in time future/ And time future contained in the past./ If all time is eternally present/ All time is unredeemable».

Apesar de todas as tentativas que possamos empreender no sentido de decifrar o sentido oculto do sonho, somente conseguimos atingir parte dos nossos propósitos.

Segundo Jean Pierrot muitos têm sido os estudiosos que se têm detido na questão do sonho - filósofos da Antiguidade como Heraclito até pensadores modernos como Jean Paul Sartre, Roger Caillois ou Michel Foucault. Todavia a infinidade de estudos mais ou menos sérios, desde as «Chaves dos Sonhos» às teorias freudianas, não conseguiu resolver o mistério quase total que rodeia o sonho. É por esse motivo que ainda hoje se mantém uma viva polémica entre os que consideram o sonho um caos informe desprovido de sentido e os que, pelo contrário, lhe reconhecem uma função significativa.

A persistência do mistério que envolve o sonho deve-se essencialmente, na opinião de Jean Pierrot, ao facto da consciência do sonho não existir no sonho mas posteriormente, isto é, ao despertar. Paul Valéry (1871-1945), diz o autor, escreveu que «Le rêve est une hypothèse, puisque nous ne le connaissons jamais par le souvenir, mais ce souvenir est nécessairement une fabrication».

Podemos assim concluir que qualquer afirmação que se faça a respeito do sonho é sempre mais ou menos polémica.

Apesar de toda esta controvérsia que gira em torno do sonho, é, contudo, possível fazer o levantamento das questões que se têm colocado a propósito da experiência onírica sobretudo no que respeita à relação sono/sonho e à especificidade do psiquismo onírico.

A ciência moderna tem avançado significativamente no campo da relação sono/sonho tendo concluído que os sonhos ocorrem na chamada fase paradoxal do sono ou fase REM (Rapid Eye Movements). As fases paradoxais ocorrem várias vezes durante o sono (num sono de oito horas sonha-se mais ou menos hora e meia). A ciência descobriu ainda que a zona do sonho no cérebro se localiza na zona pôntica reticular.

A fisiologia do século XIX observou que o sonhador mantinha durante o sono uma certa percepção do mundo exterior bem como sensações internas ligadas à actividade do sistema simpático. Tal estaria associado, na opinião do autor, às imagens e representações do sonho. Por exemplo, a má posição de uma perna levaria a sonhar-se que se estaria acorrentado. Já Aristóteles num dos estudos que consagrou ao sonho (Do Sonho e da Vigília, Dos Sonhos, Da Interpretação dos Sonhos) ligado aos trabalhos no domínio da fisiologia em De Animali considera mesmo que a alma liberta de outras preocupações se torna sensível aos movimentos mais insignificantes dos órgãos internos. Muitos especialistas notaram que estas percepções no sonho se encontram distorcidas, transformadas, muitas vezes amplificadas. O calor de um raio de sol tocando a face de uma pessoa levá-la-ia a sonhar com um incêndio. Parece ser o que acontece no relato dos sonhos de Ramón na obra de Luísa Costa Gomes, Vida de Ramón, biografia romanceada do místico maiorquino Ramón Llull (1235? - 1315?). O ruído da água a bater no casco do barco leva a personagem a sonhar com chicotadas que associa ao martírio de Jesus Cristo ou o ruído da chuva que liga ao crepitar do fogo levando-a a sonhar com um incêndio:

O balanceio das ondas faz com que Ramón se sinta, se é possível, ainda pior. Aos poucos entra num sono pesado, doentio; parecem-lhe chicotadas as batidas da água contra o casco da galera e, no delírio, imagina estar já no cárcere muçulmano, na masmorra húmida, infestada de bestas rastejantes; na cela vizinha, açoitam Jesus Cristo. Ramón levanta-se e esforça-se por encontrar uma fresta, uma brecha na parede. Cada uma das vergastadas dilacera a compassiva carne de Ramón, enquanto ele palpa com angústia infinita, a parede da cela. Encosta nela o rosto, atira contra o muro a fronte massacrada, mas não há meio por onde ver o martírio de Jesus, os seus olhos erguidos ao céu, inocentes sob a coroa de espinhos. Ramón sofre na imaginação, que é mais fulgurante, por vezes, do que a chicotada. E, não encontrando saída para o pesadelo, aflito, torturado, Ramón acorda.

Apenas para adormecer de novo, exausto. Ele sabe que o pesadelo está aí, algures, para o assaltar outra vez, para o fazer despertar. A chuva miúda, caindo no tombadilho, é o crepitar do fogo. Sujo, fraco, sozinho, Ramón avista uma turba de Sarracenos, armados de archotes, que incendeiam uma cidade. Pelas ruas apertadas, irreconhecíveis, Ramón foge, perseguido por um mouro gigantesco que lhe lança gritos e ameaças. Atravessando pátios, subindo escadas e patamares, Ramón encolhe-se, torna-se cada vez mais pequeno e, escondendo-se, enfim, numa das capelas da Catedral, empoleira-se num nicho vago, ajudado por S. Bento, e faz de estátua para iludir o Sarraceno. Mas ao olhar para baixo, dá com ele de sabre em riste, apontado ao seu peito. E, como não tem por onde fugir, Ramón levanta voo, ergue-se no ar, enquanto ouve o Mouro que pergunta: "Para onde vai a chama, quando a vela se apaga?".

Muitos sonhos são, assim, provocados por uma percepção exterior que a imaginação do sonhador transforma e amplifica na ausência da regulação das percepções objectivas concomitantes à vigília.

Ainda relativamente à especificidade do psiquismo onírico, Jean Pierrot faz referência à aparente anarquia do sonho devida à perturbação das faculdades lógicas do raciocínio e à importância da memória que parece manter-se intacta durante o sonho, facto esse que leva a alma a descobrir conhecer aquilo que pensava ignorar. Por outro lado, é sabido que o sonho provoca a exaltação da imaginação. O sonho aparece como um meio de libertação das faculdades irracionais do imaginário face aos limites do pensamento racional e às necessidades práticas que se impõem à actividade mental durante a vigília. Mas o sonho também pode ser encarado como espaço de hiperlucidez como atestam alguns resultados no domínio científico ou artístico. Por exemplo, o poeta inglês Coleridge (1772-1834) testemunhou que compôs o seu poema Kubla Khan de 1816 durante o sono.

Antes de terminar a sua abordagem às questões que se têm colocado à problemática do sonho, o autor refere ainda os estudos do século XIX que explicam o encadeamento do sonho pelo mecanismo das leis de associação mental que tinham origem em aproximações de natureza verbal como a homonímia e a sinonímia.

 

Função e Significação dos Sonhos

 

O pensamento humano tem tendência a encarar o sonho como espaço de uma experiência excepcional. Alguns sonhos são-nos perfeitamente claros na aproximação que fazemos às preocupações em que andamos absorvidos. Outros, pelo contrário, impressionam-nos pelo seu carácter de estranheza intrínseca, colocando-nos por vezes a praticar actos impensáveis pela sua violência, como já tinha observado Platão (428 a.C.- 348 a.C.) na República no diálogo entre Sócrates e Glaucon a propósito do tirano que pode despertar do homem democrático:

(Falo) Daqueles desejos que despertam durante o sono, sempre que dorme a parte da alma que é dotada de razão, cordata e senhora da outra, e quando a parte animal e selvagem, saciada de comida e de bebida, se agita, repudia o sono e procura avançar e satisfazer os seus gostos. Sabes que nessas ocasiões ela ousa fazer tudo, como se estivesse livre e fora de toda a vergonha e reflexão. Não hesita, no seu pensamento, em tentar unir-se à própria mãe, ou a qualquer homem, deus ou animal, em cometer qualquer assassínio, nem a se abster de alimento de espécie alguma. Numa palavra, não há insensatez nem impudor que ela passe adiante.

Os «desejos que despertam durante o sono» agitados pela parte da alma «animal e selvagem» levando-a a cometer actos irracionais são compelidos por pulsões de morte ou Thanatos próprias do que alguns apelidam de sonhos diabólicos.

As civilizações primitivas e a Antiguidade viam o sonho como espaço de contacto com as realidades sobrenaturais. Através dos sonhos os deuses aconselhavam os homens e profetizavam o seu futuro. Nesta perspectiva o sonho é um dos elementos da experiência religiosa entendendo-se este termo no sentido etimológico de re-ligar dois universos distintos, o sagrado e o profano. Mircea Eliade considera que o sonho pertence à categoria das hierofanias, acontecimentos ou fenómenos que manifestam o sagrado. O objecto do sonho, sendo hierofânico, deixa de poder ser concebido como um simples objecto profano e adquire uma nova função em virtude da sua dimensão sagrada.

No passado o sonho tinha uma significação fundamental, era suporte de uma mensagem com enorme importância para o indivíduo e para a colectividade devido ao seu carácter oracular. Tendo o sonho um sentido obscuro, ambíguo, havia que interpretá-lo e essa era a função que desempenhavam os onirocritas (do grego oneirokrisía, interpretação dos sonhos) e os oniromantes que prediziam o futuro pelos sonhos. José do Egipto é um dos mais famosos oniromantes do passado. Em Vida de Ramón, o narrador faz referência a Arnau (ou Arnaldo) de Vilanova (1250-1311), médico e oniromante de Pedro III de Aragão e do seu filho Jaime II, autor de De Adventu Antichristi. Arnau vaticinava o futuro dos membros da corte através dos seus sonhos como foi o caso de Frederico III da Sicília, irmão de Jaime II de Aragão. Transgredindo o código deontológico, Arnau revelou num conclave papal em Avignon os sonhos dos dois irmãos, causando a interpretação do sonho de D. Jaime dúvidas sobre a sua fé. Tal teria provocado um caso político e diplomático que só não teve consequências graças ao bom senso de Clemente V que não tomou em consideração as interpretações de Arnau. Como mais tarde comentava o Arcebispo de Montereale a Ramón, a interpretação do sonho de D. Jaime era apenas produto do que «Arnau tenha sonhado que D. Jaime [ ...] sonhou».

Sem dúvida que os sonhos precisam de ser decifrados já que aparecem sob a forma de uma linguagem codificada, a linguagem simbólica.

Antecipando as teorias de Freud, Artemidoro (século II d.C.), seguidor de Aristóteles, insistia no facto de ser necessário conhecer a personalidade do sonhador para se interpretar correctamente os seus sonhos. A sua classificação é muito próxima da moderna psicologia e a sua técnica interpretativa levava em consideração o contexto cultural, económico e social do sonhador.

 

As Teorias Psicanalíticas do Sonho

 

Jean Pierrot começa por destacar a importância da obra de Sigmund Freud (1856-1939) Die Traumdeutung de 1900 para o conhecimento da alma humana, apresentando em síntese as concepções essenciais da teoria freudiana do sonho, não esquecendo de alertar para o facto desta ter sido formulada a partir de uma perspectiva terapêutica no âmbito do tratamento de neuroses.

Freud considera que o sonho tem um significado e constitui a expressão privilegiada de cada psiquismo individual no que há de mais íntimo e pessoal. A experiência onírica como realização das pulsões faz reviver muitas vezes a infância e os seus traumas tendo, deste modo, uma função retrospectiva. Freud opunha-se às tradições anteriores que consideravam o sonho susceptível de ter um valor profético esclarecendo o indivíduo sobre o seu futuro. Para o pai da psicanálise, a libido orienta toda a existência humana incluindo a vida espiritual como a experiência religiosa ou a experiência estética. O sonho manifesto, na sua opinião, é uma máscara do conteúdo latente possuindo por isso uma linguagem simbólica.

Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo de Freud, acaba por se afastar do seu mestre em 1911 para elaborar a sua própria teoria que difere da freudiana sobretudo no que respeita às funções do sonho e à natureza do inconsciente. Jung considera que a função do sonho é a de readaptação permanente e constante do psiquismo humano, contestando a importância excessiva atribuída por Freud à sexualidade no sonho e no inconsciente. Para ele, o inconsciente constitui a cada momento uma compensação global do consciente, isto é, o sonho permite que se manifestem todas as tendências normais que o indivíduo reprime mais ou menos intencionalmente na sua vida consciente. À concepção retrospectiva do sonho de Freud, Jung opunha uma concepção prospectiva e dinâmica: o inconsciente tende a compensar e corrigir as tendências negligentes do consciente face ao risco, alertando-o e aconselhando-o, recorrendo para isso a uma sabedoria ancestral. Jung prova a existência de um inconsciente colectivo para além do individual pela presença nos sonhos de figuras ou constelações de imagens ou ainda temas míticos que designou de arquétipos.

Jean Pierrot critica as teorias psicanalíticas, atendendo ao facto de Freud e Jung ignorarem o sonho manifesto e as suas particularidades estéticas. O autor contesta a leitura redutora do sonho por Freud ao isolar os símbolos e imagens da narrativa onírica considerando-a insignificante. Segundo Pierrot, Freud procedia a uma leitura unívoca dos símbolos sexuais convertendo o símbolo num signo transparente ignorando, assim, toda a ambiguidade e opacidade da linguagem simbólica. Neste aspecto, a obra de Gaston Bachelard (1884-1963) é, para o autor, bem mais enriquecedora. Bachelard procurou harmonizar as ciências com a lógica, a psicologia e a poesia. Na linha dos arquétipos de Jung, dividiu os tipos imagéticos segundo os quatro elementos primordiais. A sua obra é composta por La Psychanalyse du Feu (1938), L’Eau et les Rêves (1942), L’Air et les Songes (1943), La Terre et les Rêveries de la Volunté e La Terre et les Rêveries du Repos (1945), La Poétique de la Rêverie (1961).

Por fim Jean Pierrot contesta ainda o facto de Freud ter negado qualquer impacto de acontecimentos da vida orgânica no sonho como reacção ao positivismo do século XIX.

 

Estrutura do Universo Onírico

O universo onírico possui constantes que, segundo Jean Pierrot, dependem simultaneamente da vida psico-fisiológica, já que o sonho é um fenómeno do sono, e da estrutura da imaginação.

O psiquiatra Ernest Aeppli, autor da obra Les Rêves et leur interprétation (1951), considerou, já depois de Jung, que a divisão em actos do teatro reproduzia a estrutura do sonho. Segundo este especialista, «Os sonhos possuem muitas vezes uma extraordinária construção. Têm a mesma divisão que uma peça de teatro, que um drama dividido em actos [ ...] . Pode admitir-se, mesmo respeitando a evolução da história do teatro, que a divisão em três, quatro ou cinco actos obedecia a uma lei psíquica muito antiga». Jean Pierrot relaciona também o sonho com uma aventura carregada de peripécias, com um movimentado filme de aventuras marcado pela incoerência já que os diferentes episódios parecem desligados entre si. Apesar disso, socorre-se, tal como a psicanálise moderna, da metáfora do teatro ao referir-se aos aspectos recorrentes do universo onírio.

 

A Encenação do Sonho

São formas privilegiadas de encenação onírica a viagem de navegação, o percurso por um labirinto, a queda, a queda por uma espiral, o voo e a ascensão.

A viagem de navegação ou abandono ao fluxo contínuo das águas é um topos que aparece em grandes textos oníricos clássicos como em Alastor (1816) de Percy Shelley (1792- 1822), poema alegórico onde se busca a idealização da beleza através da contemplação e da visão onírica, e o conto de Edgar Allan Poe (1809-1849) The Domain of Arnheim (1847), do qual faz parte a seguinte passagem:

O acesso habitual a Arnheim fazia-se através do rio. O visitante deixava a cidade ao amanhecer. Ao longo da manhã passava por entre margens de uma beleza tranquila e familiar onde pastavam inúmeros carneiros, o seu velo branco pintalgando o verde fulgurante dos prados ondulantes [ ...] . Conforme a tarde se aproximava, o canal ia-se tornando mais estreito; as margens cada vez mais alcantiladas; e estas vestidas de folhagem mais rica, mais profusa e mais sombria. A água ganhava transparência. O curso do rio tornava-se de tal forma sinuoso que a sua superfície cintilante não se podia avistar a uma distância superior a alguns metros. Em todo o momento a embarcação parecia prisioneira no interior de um círculo encantado ladeado por paredes de vegetação indomável e impenetrável, encimado por uma cobertura de cetim azul ultramarino e desprovido de fundo - a quilha balançando por si só com admirável simetria, sobre a de um barco fantasma que, por qualquer acidente, tivesse sido invertido, conduzido por uma tripulação permanente e essencial com o único propósito de o suster. O canal tornava-se então um desfiladeiro - embora o termo não seja o mais adequado e eu o empregue unicamente devido a não existir qualquer palavra que represente o mais impressionante - não o mais distintivo - traço fundamental do cenário. O aspecto de desfiladeiro dizia apenas respeito à altura e paralelismo das margens; tinham-se perdido totalmente as outras características. As paredes da ravina (por entre as quais deslizava tranquilamente a água límpida) erguiam-se a uma altura de cem e por vezes de cento e cinquenta pés, e aproximavam-se tanto entre si como para expulsar a luz do dia; enquanto os longos líquenes semelhantes a plumas que pendiam densamente dos matagais que se entrelaçavam em cima impregnavam todo o abismo de uma lúgubre obscuridade. As curvas sinuosas do rio tornavam-se mais frequentes e intrincadas parecendo, por vezes, desenhar-se sobre si próprias de tal forma que o viajante há muito havia perdido todo o sentido de orientação. Além disso, este tinha sido envolvido por um sentimento de aguda estranheza. A noção de natureza mantinha-se ainda mas as suas qualidades pareciam ter-se alterado, reinava uma misteriosa simetria, uma inquietante uniformidade, uma perfeição mágica nestes novos atributos. Não se avistava um ramo caído - uma folha ressequida - um seixo perdido - um pedaço de terra queimado pelo sol. A água cristalina irrompia contra o granito imaculado, ou sobre o musgo irrepreensível, com uma exactidão de contornos que simultaneamente deleitava e confundia o olhar.

Tendo transposto ameaçadoramente os labirintos deste canal durante algumas horas, com a obscuridade aprofundando-se a cada momento, uma curva acentuada e inesperada da embarcação conduziu-a repentinamente, como se caída do céu, ao interior de uma lagoa circular de considerável extensão comparada à largura do desfiladeiro.

Este excerto do conto de Poe relata um percurso por um rio que, à medida que o viajante vai avançando, não só em termos espaciais como temporais, se vai estreitando e aprofundando, «Conforme a tarde se aproximava, o canal ia-se tornando mais estreito; as margens cada vez mais alcantiladas», carregando-se de sombras e de tal maneira se torna tortuoso que provoca a desorientação: «As curvas sinuosas do rio tornavam-se mais frequentes e intrincadas parecendo por vezes desenhar-se sobre si próprias, de tal forma que o viajante há muito havia perdido todo o sentido de orientação». A personagem realiza um percurso ao abismo labiríntico e espiralar que a amedronta e confunde mas que a transporta a uma outra dimensão da realidade que a vai deslumbrar. O que impressiona neste texto são os sentimentos contraditórios que sugere - a melancolia e o temor evocados pela obscuridade do abismo mas simultaneamente deslumbramento pela limpidez das águas e pela geometria e perfeição da natureza. É interessante a comparação «a embarcação parecia prisioneira no interior de um círculo encantado [ ...] a quilha balançando por si só com admirável simetria, sobre a de um barco fantasma» para sugerir a imagem do barco reflectida nas águas, reflexo que, como Bachelard diz, duplica não só o mundo mas também o sonhador/viajante, metamorfose que provoca estranheza, inquietação: «l’eau, par ses reflets, double le monde, double les choses. Elle double aussi le rêveur, non pas simplement comme une vaine image, mais en l’engageant dans une nouvelle expérience onirique». A idealização da natureza que «simultaneamente deleitava e confundia o olhar» é fruto do convite à libertação da realidade sensível que constitui esta viagem. Não esqueçamos que para Platão a alma era espelho e em todo o texto «l’eau donne au monde ainsi créé une solennité platonicienne». Tal como a viagem convida o sonhador à libertação do contingente, também a leitura desta narrativa conduz o leitor à abstracção da realidade participando, igualmente, do sentimento de estranheza.

Regressando ao topos da viagem de navegação, J. Pierrot lembra que este tipo de percurso se torna muitas vezes subterrâneo como acontece em Viagem ao Centro da Terra (1864) de Júlio Verne (1828-1905) ou na obra de Gérard Nerval (1808-1855) Aurélia (1855) na qual o herói efectua uma viagem ao país dos seus antepassados, experiência onírica primitiva ligada ao mito da navegação das almas dos mortos num rio infernal, mito recorrente em muitas literaturas como são os casos da Eneida de Virgílo (século I a.C.) e do Diálogo dos Mortos de Luciano de Samósatos (século II a.C.). Vejamos a passagem ilustrativa da Eneida que narra a viagem ao mundo inferior realizada por Eneias guiado por Sibila de Cumas:

Daqui parte um caminho que leva às ondas do Tartáreo Aqueronte.

Aqui um redemoinho de espesso lodo e vasta voragem

referve e vomita na Cocito toda a sua areia.

Um barqueiro arrepiante guarda as águas destes rios,

Caronte, esquálido e terrível, no queixo, uma espessa,

desgrenhada, barba branca, olhos fixos, em chamas;

um sórdido manto atado com um nó pende-lhe dos ombros.

Ele mesmo com a vara faz andar a jangada, iça a vela

e transporta na barca da cor da ferrugem os corpos;

já avançado em anos, mas a velhice dos deuses é fresca e viçosa.

Para aqui corria, para as margens, toda a turba dispersa,

mães e varões, corpos sem vida

de valentes heróis, rapazes e donzelas inuptas,

jovens colocados na pira à vista dos pais:

tal como nas florestas, aos primeiros frios outonais,

as folhas caem numerosas; tal como, dos fundos redemoinhos,

vêm juntar-se em terra multidões de aves, quando a gelada estação

as faz atravessar o pélago e as leva para terras soalheiras.

De pé, imploravam que os deixassem fazer a travessia primeiro,

e estendiam as mãos, no anseio de passar à outra margem.

Porém o nauta sombrio recebe, ora uns, ora outros,

mas a alguns, afasta-os para longe da areia da praia.

Surpreso, de verdade, e abalado por este tumulto,

Eneias pergunta: «Diz-me, ó virgem, que corrida é esta para o rio?

Que procuram as almas? Ou que distinção leva

a que estas deixem a margem, e aquelas varram com os remos o lívido elemento?»

Respondeu-lhe em poucas palavras a longeva sacerdotiza:

«Filho de Anquises, descendente inegável dos deuses,

o que vês são do Cocito os pântanos profundos e os Estígios paúis,

por quem os deuses temem jurar e quebrar o juramento.

Toda esta turba que avistas são desgraçados sem sepultura.

Aquele barqueiro é Caronte; estes, que as ondas levam, foram sepultados.

Não é dado fazê-los transpor as horrendas margens

e as roucas correntes, antes de os seus ossos repousarem na tumba.

Durante cem anos vagueiam, volitando em torno destas praias;

só depois são admitidos, enfim, a tornar a ver o almejado pântano.».

Depois da sua estadia em Cartago, Eneias chega a Itália e vai procurar Sibila tal como lhe tinha indicado o profeta Heleno. Ela propôs-se guiá-lo na viagem ao mundo subterrâneo onde seu pai Anquises lhe poderia predizer o futuro. Contudo, Sibila de Cumas não esqueceu de alertar Eneias que a descida ao Averno é fácil mas subir até ao doce ar do céu é realmente uma tarefa árdua: «Troiano, filho de Anquises, é fácil descer ao Averno;/ [ ...] Mas voltar para trás e evadir-se para os ares supernos,/ esse é o trabalho, esse é o esforço!» (VI. 126-129).

Após a entrada na caverna, Eneias e Sibila passaram incólumes pelos vultos assustadores da Doença, da Preocupação da Vingança, da Fome, da Discórdia e da Guerra até chegarem ao local onde a figura terrífica de Caronte conduzia a sua barca, guardando as águas dos rios Aqueronte e Cocito (rios da angústia e das lamentações). Eneias fica chocado perante o cenário de morte e de sofrimento que contempla bem como com a implacabilidade de Caronte que «recebe ora uns, ora outros,/ mas a alguns, afasta-os para longe da areia da praia» (VI. 315-316). É de destacar a associação que o autor estabelece entre o universo dos homens e o da natureza através dos símiles a turba das almas que «imploravam que os deixassem fazer a travessia primeiro» (VI. 313) e as folhas que caem na floresta quando chega o Inverno ou os bandos de aves que se reúnem para a sua viagem de migração. Esta associação tem não só uma função amplificadora já que traduz o número elevado daqueles que se reuniam nas margens, a «turba dispersa», como também de aproximação das duas realidades pois estabelece a relação entre o ciclo da vida dos homens e o ciclo da vida da natureza.

Em Regresso ao Paraíso (1912) de Teixeira de Pascoaes (1877 -1952), a figura de Caronte é substituída, devido à influência do catolicismo, por Satã mas mantém ainda alguns traços da personagem virgiliana:

«Satã consome o fogo dos seus dias,/ Cuidando, com amor,/ do martírio das almas, que aos Infernos/ Chegam da Terra, em ondas e tumultos.// Junto à porta infernal, que tem escrita a trágica lenda do Poeta,/ Já comida das chamas e do fumo,/ Satã espera as almas, que se espantam/ E dizem, a tremer os seus pecados:/ Seus ódios, seus amores.../ E depois ajoelham e murmuram/ Súplicas de perdão,/ E sussurram palavras sem sentido;/ Lembram débeis arbustos, sob as patas/ dos ventos a galope».

Satã faz despertar nas almas recém-chegadas ao Inferno os mesmos sentimentos de terror e vulnerabilidade perante o carácter inexorável dos seus actos que os gestos do «nauta sombrio» provocam nas almas implorantes que volitavam nas margens do rio. A fragilidade do destino humano é também associada por Pascoaes à natureza pela evocação da debilidade dos arbustos perante a violência do vento sugerindo a impotência do homem face à implacabilidade das forças que governam a sua existência.

Tal como vimos no excerto do conto de Poe atrás citado, o abandono ao fluxo das águas pode carregar-se de angústia - a corrente do rio interior, símbolo da evolução da vida ou da torrente contínua do pensamento, precipita-se, a descida ganha velocidade através de meandros cada vez mais enredados até se atingir uma outra forma de estrutura onírica - o labirinto.

O labirinto é dos topos mais importantes da literatura contemporânea. Harold Bloom em O Cânone Ocidental (1994) denomina de «A Idade Caótica» a época literária que se prolonga de Freud até aos nossos dias.

Percorrer o labirinto representa a experiência angustiante de perda de orientação, a progressão num cárcere cujas paredes recuam à medida que se avança. Quando o labirinto é subterrâneo acresce-se à angústia, a fome e a sede (tal como já atrás referimos na experiência onírica do índio no ventre do jacaré), o medo do esmagamento, a angústia da mineralização. O pesadelo do labirinto, com o seu processo tão característico de repetição, forneceu a sua estrutura a grandes obras literárias como a O Processo (1925) de Franz Kafka (1899-1924) e está omnipresente nos contos do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).

No conto «A Casa de Asterion», incluído em El Aleph (1949), Borges faz a recriação do mito do Minotauro a partir da obra da Apolodoro (século I ou II da era cristã), um dos principais autores gregos atraídos pela figura de Teseu. Para o autor argentino, o labirinto é simultaneamente símbolo do mundo, do cosmos e do mundo interior do homem, do microcosmos. Em «Três Versões de Judas», escreve Borges: a «ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da Terra correspondem às formas do Céu; as manchas da pele são um mapa das incorruptíveis constelações; Judas reflecte, de certo modo, Jesus». O mundo e o Eu é para Asterion um espaço de quietação e isolamento que ao mesmo tempo o separa dos outros e o protege: «É verdade que não saio de casa, mas é também verdade que as suas portas (cujo número é infinito) estão abertas de dia e de noite aos homens e também aos animais.[ ...] Não encontrará aqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão». O verbo isolar deriva do latim isolare que, por sua vez, deriva de isola, ilha. O Homem é, assim, encarado como uma ilha e é a sua solidão, o seu silêncio e vazio existenciais que o tornam único. Tal leva o Minotauro a olhar com desdém e comiseração os outros numa postura de superioridade aristocrática: «não posso confundir-me com o vulgo, ainda que o queira a minha modéstia». Esta atitude de distanciamento irónico do autor face à existência humana leva Ana María Barrechea a afirmar que «Borges é um escritor admirável, comprometido em destruir a realidade e em converter o homem numa sombra».

Em «A Casa de Asterion», Borges leva-nos a reflectir sobre as angústias existenciais do Homem, sobre a busca da sua identidade num mundo e num Eu labiríntico que o conduz perigosamente à sua despersonalização. A esse título, veja-se a duplicação de Asterion que inventa um Outro para o ensinar e para o guiar num percurso labiríntico que ele tão bem conhece. Os sentimentos que dominam o Minotauro são, para lá da profunda solidão procurada mas também imposta, o tédio, o desejo de libertação de um mundo que se sente demasiado pequeno, claustrofóbico. Na demanda de liberdade descobre que as suas dúvidas se estendem a todo o universo: «uma visão nocturna me revelar que também são catorze (são infinitos) os mares e os templos». Como o próprio narrador informa, o número catorze simboliza o infinito. Por um lado é a soma de sete, símbolo em variadas culturas de perfeição dinâmica, de purificação após um ciclo completo, de renovação. Por outro, se somarmos os seus dois números componentes, o um e o quatro, temos o cinco, símbolo de união, de harmonia, associado ao pentagrama que representa o Homem íntegro (no sentido etimológico do termo). O símbolo alquímico Annulus Platonis numa gravura do século XVIII conjuga a simbólica do sete (círculo) com a simbólica do cinco (pentagrama).

Os sentimentos que dominam Asterion são também preponderantes em obras de outros autores contemporâneos talvez porque, como lembra Lima de Freitas, o mito do labirinto acompanhe a aparição das civilizações urbanas. O labirinto pode não só representar a forma geométrica espiralada, ilustrada por exemplo pela Torre de Babel, como também simbolizar o Caos, a confusão, a ininteligibilidade tal como acontece neste conto de Borges. O Homem, pobre Asterion, anseia libertar-se do caos que é a sua existência, anseia libertar-se de Babel para regressar a Sião, sua pátria primitiva, seu estado primevo.

Segundo Ivette Centeno, nos tratados alquímicos o Minotauro representa as forças inconscientes que é preciso vencer sendo para isso necessário tomar-se consciência delas para as fixar, para as integrar. Só assim se atinge a integralidade perdida do Eu:

Dans les traités alchimiques la mer, la forêt , la montagne, le jardin, le labyrinthe, sont des lieux symboliques où l’adepte découvre des poissons, des cerfs et des licornes, des lions, des dragons, des serpents, des taureaux et aussi le minotaure - Qui tous représentent les forces inconscientes qu’il faut vaincre, c’est-à-dire, dont il faut prendre conscience pour les "fixer", pour les intégrer. C’est ainsi que l’on arrive à la complétude du Soi, l’être total dont ces auteurs avaient la connaissance et la nostalgie.

Mas como todos os símbolos são ambíguos, o labirinto não constitui uma excepção. O que fascina no labirinto é precisamente a impressão de temor e sedução que sobre ele recai. Os labirintos cristãos desenhados nos pavimentos das igrejas, como o da Catedral de Chartres, eram simulacros da peregrinação à Terra Santa. Estes itinerários que eram percorridos com fervor místico pelos penitentes em demanda da salvação, apesar de longos e tortuosos, não deixavam, no entanto, de se tornar irresistíveis.

A experiência onírica da queda ou, como lhe chama M. Eliade, catábase (do grego katabasis), corresponde na perspectiva deste estudioso a um descensus ad inferos realizado com vista a uma iniciação como acontece a Eneias na descida ao Averno.

No soneto de Antero de Quental (1842-1891) «No Turbilhão» incluído em Sonetos Completos (1886), obra esta organizada por Oliveira Martins, assistimos a uma experiência onírica na qual o poeta empreende uma queda vertiginosa:

No meu sonho desfilam as visões,

Espectros dos meus próprios pensamentos,

Como um bando levado pelos ventos,

Arrebatado em vastos turbilhões...

Numa espiral, de estranhas contorções,

E donde saem gritos e lamentos,

Vejo-os passar, em grupos nevoentos,

Distingo-lhes, a espaços, as feições...

- Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,

Que me fitais com formidável calma,

Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?

Quem sois, visões misérrimas e atrozes?

Ai de mim! Ai de mim! E quem sou eu?!...

Esta catábase dá-se através duma «espiral de estranhas contorções», através de um percurso espiralar num universo de trevas que provoca sentimentos de estranheza, de inquietação sugerida pela evocação das lamentações lúgubres na expressão «donde saem gritos e lamentos», de vaguidade traduzida pela imagem «grupos nevoentos» e de perplexidade expressa nas interrogações «Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?/ Quem sois vós, visões misérrimas atrozes?».

A espiral, símbolo carregado de significações, aparece vulgarmente associada ao labirinto e, portanto, ao Caos, à confusão, à ininteligibilidade. O turbilhão traduz geralmente evolução no seu movimento helicoidal a partir do centro ou de involução no regresso ao centro. São estes dois movimentos contraditórios que encontramos no último terceto deste soneto de Antero - o poeta interroga-se sobre o que vê, «Quem sois vós [ ...] ?», distanciando-se dos seus próprios pensamentos numa dinâmica evolutiva, mas também se questiona «Quem sou eu ?», interrogação esta dirigida ao centro traduzindo, assim, uma dinâmica involutiva. Apesar de contrários estes dois movimentos são um só, são simultaneamente queda e ascensão. Pela simbólica do turbilhão, a violência deste movimento é dirigida por forças superiores representando uma intervenção extraordinária no rumo da vida, um momento extático.

Quando o sonho angustiado, caótico e persecutório é substituído pelo sonho feliz, agradável, à queda sucede-se o voo, o percurso ascensional sobrevem ao percurso descencional.

Ao referir-se ao simbolismo da ascensão, M. Eliade diz que o voo extático ou anábase se associa por vezes a uma fuga vertiginosa, a uma perseguição de uma figura aterrorizante: «O herói foge mais depressa que os corcéis mágicos, mais rapidamente que o vento, tão veloz como o pensamento - e, contudo, só no final consegue desembaraçar-se do seu perseguidor». Quando o herói inicia o voo verifica-se uma mutação ontológica no seu ser, o peso é abolido, desmaterializa-se. O voo é um acto de transcendência, uma experiência mística. Tal é o que parece verificar-se no relato dos sonhos de Ramón presente em Vida de Ramón no excerto acima apresentado. As experiências oníricas relatadas neste texto dizem respeito a um processo gradativo que vai da angústia ao êxtase, do labirinto à libertação pelo voo. Num primeiro sonho Ramón encontra-se encarcerado numa masmorra muçulmana e vive o martírio de Cristo que pressente próximo de si já que a parede do cárcere não lho permite ver: «Cada uma das vergastadas dilacera a compassiva carne de Ramón, enquanto ele palpa com angústia infinita, a parede da cela». Ao Homem não é permitido, atendendo à sua natureza acidental, o acesso directo ao sagrado, apenas lhe é possível aceder a ele através do espírito. A tortura vivida na imaginação é todavia mais dolorosa que a experimentada na carne. Para se libertar do pesadelo, Ramón desperta. Pensamos que neste texto o verbo despertar possibilita duas leituras ligadas ao próprio conceito de sonho: é no sonho que Ramón tem, como vimos, acesso ao sagrado, à verdadeira existência. Mas para os gregos Sono e Morte, Hypnos e Thanatos, são irmãos gémeos. Na Grécia, na Índia e no Gnosticismo, a acção de despertar tinha um significado soteriológico no sentido amplo do termo. Deste modo, é o pesadelo de Ramón que lhe permite a sua mutação espiritual fazendo-o erguer de entre os mortos e despertar para Cristo como revela a citação anónima presente na Epístola aos Efésios (V, 14).

No segundo sonho Ramón vê-se perseguido por um mouro terrível, «gigantesco», através das ruas labirínticas de uma cidade: «Pelas ruas apertadas, irreconhecíveis, Ramón foge». Agora o labirinto é exterior, ao contrário do que se passava no primeiro sonho que se situava no mundo subterrâneo e húmido: «masmorra húmida, infestada de bestas rastejantes». O universo do primeiro pesadelo estava associado à água, ao passo que o do segundo está associado ao fogo.

Depois de auxiliado por S. Bento, tal como o neófito é conduzido pelo guia, Ramón tenta iludir o Sarraceno metamorfoseando-se em estátua, processo este representativo da recusa da vida activa pela opção da vida contemplativa, passo essencial para a transmutação espiritual. Só quando Ramón se depara com o mouro «de sabre em riste, apontado ao seu peito», isto é, só quando Ramón aceita incondicionalmente o martírio, levanta voo e liberta-se do perseguidor, vivendo finalmente o êxtase, o contacto com o sagrado, desembaraçando-se das suas contingências.

A água também preside a todas as formas alquímicas de mutação. Como refere Ivette Centeno, «A primeira fase da Conjugação dos opostos é na água que se realiza». Na fase de nigredo, ao elemento húmido segue-se o elemento seco introduzido pelo fogo. É o fogo que, como diz a mesma estudiosa, «desencadeia, precipita, acelera toda a evolução». Com o efeito purificador do fogo «inicia-se todo o processo que encaminhará os vários intervenientes desde a morte ou escuridão, até à luz».

A mutação alquímica que se dá através da passagem do elemento húmido ao elemento seco, da água ao fogo, fogo que estabelece o caminho entre a água e o céu, é um percurso próximo do vivido por Ramón das masmorras húmidas, às ruas incendiadas da cidade, até à libertação pelo voo ascensional.

A experiência xamânica resulta do êxtase, durante o qual o xamã empreende em espírito longas viagens até aos mais altos céus. Durante o êxtase o xamã esforça-se por abolir a sua condição humana e por reintegrar a condição do homem primevo de que nos falam os mitos paradisíacos.

 

«O Paraíso Terreal» é uma passagem da hagiografia medieval Conto de Amaro recolhida por José Joaquim Nunes do códice alcobacense n º266. Trata-se de um relato de uma experiência mística cujo protagonista tem acesso a uma visão do paraíso antes da sua morte:

Depois que Amaro chegou aa meetade daquella serra, uyo estar huu castello mais grande e mais alto e mais fremoso de quantos no mudo auya, e estaua e huu grãde chãao ena cima daquella serra e era tam grande que auya em rredor mais de cinquo legoas. E todo o castello e as torres eram de pedra marmore e parfilios e huas pedras erã brancas e outras uerdes e outras uermelhas e outras pretas. E estauã hy cinquo torres muy altas sem conto e de cada hua destas torres saya huu rryo e entraua eno mar cada huu por sy. E, ante que chegasse aaquelle castello, achou hua tenda de pedras cristaaes e d’outras myutas pedras fremosas e era tam grande que bem caberyã so ella quinze mjll cauallos e era tam alta que nom poderyã chegar acima della cõ hua seeta. Esta tenda não tijnha esteo que a teuesse, mas estaua e arcos toda aaredor. Esta tenda era estrada cõ muytas pedras preciosas e estavã dentro quatro fontes, muy bellas e muy preciosas, e eram lauradas de metal e saya a augua por senhas bocas de lyõoes. E el jouue em aquella tenda a gram uiço e a gram prazer e de todo pesar e coyta que auya todo lhe aly esqueeceo e aly folgou muyto em aquella tenda, e desy foy-sse para a porta daquel castello, e estaua ante a porta delle huu alpender, cuberto de abobeda muy alta. E entõ Amaro chegou aa porta daquell castello e quisera entrar dentro, mais nõ o quis leixar o porteiro e disse-lhe:

- Amjgo, nõ entrarás dentro, que ajnda nõ ás tepo.

E Amaro lhe disse:

- Rrogo-te por Deus que me digas cujo he este castello, tam rryco e tam fremoso que andey per mujtas terras e uy muy nobres castellos e nuca uy tam nobre, ne tam fremoso como este, e marauilho-me quall foy o meestre que tal cousa fez, tam nobre e tam fremosa como esta.

E o porteiro entendeo que era home de sancta uida e que lhe quisera Deus mostrar aquelle logar e disse-lhe:

- Amigo, sabe que este he o parayso terreal em que Deus fez e formou Adam.

E, quando Amaro ouujo dizer que aquelle era o parayso terreal, ergeo as mãaos ao ceeo e começou de chorar e disse:

- Meu padre spritual, que es enos ceeos, ajas louuores de mi, porquanto me fezeste que oje e este dia eu uejo quanto bem em este mudo cobijcey e jamais nõ ueerey coyta ne pesar; ora som senhor de quanto bem me Deus fez.

E Amaro rrogou ao porteiro que o leyxasse entrar dentro e o porteiro disse:

- Amjgo, non trabalhes, que ajnda nõ ás tempo de entrar dentro, mas farei-te hua cousa: quero-te abrir a porta e ueeras algua cousa do bem e do sabor que aqui ha.

E entõ o porteyro abryo as portas, e as portas poderyã seer tamanhas como corredura de huu caualo, e o porteiro lhe mostrou primeiramete a poma de que Adam comera e mostrou-lhe outras muytas cousas.

E Amaro uyo dentro tantos prazeres e tantos sabores e tãtos uiços quantos nõ poderya contar nehuu home do mudo, e quantas aruores no mudo auya todas aly estauã e erã muy altas sobejamete, e todas eram cubertas de folhas e cheas de fruytas, e as heruas erã uerdes e cõ flores e cheirauã tam bem que non há home que o podesse contar ne dizer. Aly estauã muytos lauatoryos, feitos a grande nobreza. E aly nuca era noyte, ne chuua, ne fryo, ne quaentura, mas aly era muy boo tenperameto.

E Amaro uyo muytas tendas de panos uerdes e uermelhos, muy preciosos, e d’outras muytas colores. E todollos canpos jaziã estrados de flores e de maçãas e de larãjas e de todallas outras fruytas do mudo. E asi cantauã as aues tam saborosamete que, ajnda que hy nõ ouuesse outro uiço, aquell auondarya muy bem.

Tal como em grande parte dos mitos paradisíacos, o lugar sagrado situa-se numa montanha, numa «serra», símbolo que, segundo M. Eliade, contém uma dupla sacralidade: «por um lado, participa no simbolismo espacial da transcendência ("alto", "vertical", "supremo", etc.), e, por outro, é o domínio por excelência das hierofanias atmosféricas e, como tal, morada dos deuses». A montanha como centro de numerosas teofanias representa o terminus da ascensão humana no caminho para a santidade. Mas este percurso é difícil e o sagrado é inacessível ao comum dos mortais. A inacessibilidade do transcendente está traduzida no texto pelo símbolo do castelo, um «castello mais grande e mais alto e mais fremoso de quantos no mundo auya», edificação que tem como função proteger o sagrado. Neste castelo haviam cinco torres, cujos degraus correspondem aos níveis de ascensão ao Céu sendo o cinco o símbolo da Ordem e da perfeição. Antes de se aproximar das portas do castelo, Amaro repousou numa «tenda de pedras cristaaes e d’outras mujtas pedras fremosas», espaço este carregado de sacralidade, onde o divino se manifesta. Convém recordar que a tenda é um símbolo encarado em várias culturas como protótipo do Templo. É aqui que Amaro experimenta as primeiras impressões de plenitude: «E el jouue em aquella tenda a gram uiço e a gram prazer e de todo pesar e coyta que auya todo lhe aly esqueeceo e aly folgou muyto». A transformação que se opera na personagem pelo esquecimento da dor e do sofrimento devido à intensidade da impressão de plenitude está associada à simbólica das pedras preciosas que representam a transmutação do opaco em translúcido, a passagem das trevas à luz, da imperfeição à perfeição e às quatro fontes genésicas, origem da vida e do conhecimento.

Tal como qualquer processo iniciático, em que o adepto é acompanhado pelo guia que o introduz no rito, neste texto Amaro é recebido pelo anjo, pelo «porteiro», intermediário entre Deus e o mundo, símbolo da ordem espiritual. Este não permite que Amaro transponha a porta, isto é, que tenha acesso directo ao contacto com o divino, que faça a passagem das trevas à luz já que ainda não chegou a sua hora, «ajnda nõ ás tempo», como lhe diz. No entanto, visto ser homem «de sancta uida e que lhe quisera Deus mostrar aquelle logar», o anjo permite-lhe entrever o paraíso através das portas do castelo. O cenário que a personagem vislumbra é todo ele marcado pela abundância e pela harmonia: a fertilidade da natureza sugerida pela exuberância da flora, «quantas aruores no mudo auya todas aly estauã e erã muy altas sobejamete, e todas eram cobertas de folhas e cheas de fruytas, e as heruas erã verdes e cõ flores», pelo aroma dos perfumes, «cheirauã tam bem que nom há home que o podesse conta ne dizer», pela melodia dos cantos das aves, «asi cantuã as aues tam saborosamete». A transmutação da natureza no sentido da perfeição é também alargada ao clima de Primavera eterna e à suspensão do tempo: «aly nuca era noyte, ne chuua, ne fryo, ne quaentura, mas aly era muy boo tenperameto». Temos, portanto, um espaço marcado por símbolos de luz, de transcendência, de perfeição, que faz com que a personagem experimente um estado de graça sobrenatural, de beatitude, viva um regresso ao estado edénico, ao estado primevo, ascendendo a um nível superior de espiritualidade ao tomar contacto com o sagrado ultrapassando a sua condição humana.

Em conclusão, o sonho do voo e os sonhos ascensionais em geral representam a mutação ontológica do ser no sentido da sua purificação espiritual e estão presentes na literatura em todos os tempos - desde o mito de Ícaro, ao tapete voador das Mil e Uma Noites, ou à ficção científica contemporânea.

 

O Cenário do Sonho

Como vimos, o sonho faz com que se percorram espaços variados transportando subitamente o sonhador de um ponto do planeta a outro.

Assim, os cenários oníricos são muito diversificados podendo representar uma infinidade de paisagens naturais. Contudo, apesar desta multiplicidade espacial (espaço subterrâneo ou imensidão cósmica, espaços rurais ou urbanos), os cenários oníricos possuem alguns aspectos comuns.

Pierrot começa por sublinhar que os cenários oníricos são fruto da imaginação do sonhador que, à medida das suas necessidades, vai fornecendo os elementos, os detalhes considerados indispensáveis.

O panorama que contempla o sonhador não é pois fixo: ao longo do sonho, vai-se tornando preciso ou metamorfoseia-se consoante os seus desejos ou temores. Por exemplo, o corredor por onde avança o sonhador transpondo uma série de portas pode transformar-se gradualmente numa majestosa avenida ou, inversamente, se o sonho se carrega de angústia. A abertura ou fechamento do espaço depende, assim, dos sentimentos e emoções que dominam o sonhador. À variedade do cenário não corresponde de forma alguma o aspecto luxuriante - o cenário aparece sempre relativamente estilizado como vimos no excerto do conto de Poe onde o narrador só faz referência aos elementos que contribuem para sugerir as impressões já atrás focadas. À estilização do cenário há que acrescentar a luminosidade vaga e difusa quando não mesmo a obscuridade que envolve o panorama onírico. Lugares, personagens e objectos do sonho não são iluminados por uma única fonte de luz que introduziria a ideia de profundidade e perspectiva com o jogo de luz e sombra. Os objectos, pelo contrário, aparecem uniformemente iluminados como se a luz emanasse deles mesmos e da atenção do sonhador ao contemplá-los. Daí uma impressão ligeiramente crepuscular.

No soneto de Camões «Quando o sol encoberto vai mostrando» é esse ambiente vago de penumbra que envolve a experiência onírica do sujeito, impressão traduzida pela adjectivação antitética "quieta" e "duvidosa", pelo emprego do gerúndio "mostrando" e "imaginando" e pela presença da aliteração:

Quando o sol encoberto vai mostrando

ao mundo a luz quieta e duvidosa,

ao longo de uma praia deleitosa,

vou na minha inimiga imaginando.

Segundo David Mourão Ferreira, nos primeiros três versos deste soneto, verifica-se o delinear de «círculos de diâmetro cada vez mais apertado - a rota do Sol, a esfera do mundo, a curva da praia - até no quarto verso enfim se revelar, como centro de tudo, o sujeito de enunciação».

A visão da mulher amada é notoriamente fragmentária e contraditória, um somatório de imagens imprecisas e fugazes resultante da incapacidade do sujeito em fixar o objecto da sua contemplação:

Aqui a vi, os cabelos concertando;

ali, co a mão na face tão fermosa;

aqui, falando alegre, ali cuidosa;

agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,

erguendo aqueles olhos tão isentos;

aqui movida um pouco, ali segura;

aqui se entristeceu, ali se riu;[ ...] .

O poeta sugere imagens de ordem visual ao referir-se ao gestos e movimentos da sua "inimiga", «Aqui a vi, os cabelos concertando; [ ...] / agora estando queda, agora andando./ Aqui esteve sentada, ali me viu,/ erguendo aqueles olhos tão isentos», e imagens de ordem auditiva, «aqui, falando alegre, ali cuidosa». Hernâni Cidade aproxima este soneto do soneto 76 de Petrarca estabelecendo o paralelismo entre a descrição da amada em Camões e a de Laura: «Qui cantó dolcemente, e que s’assise;/ Qui si rivolse, e qui rattenne il passo;/ Qui co’ begli occhi mi trafisse il core;/ Qui disse uma parola, e qui sorrise;/ Qui cangió ’il viso.» (V., Soneto 76). Para este crítico, Camões, como Petrarca, na ausência da amada, «se lhe compraz a fantasia em por toda a parte lhe desenhar a múltipla e querida imagem» numa atitude de quem da terra contempla o Paraíso.

O amor para Camões é uma via ascética que conduz o sujeito ao êxtase mas que o leva, simultaneamente, a reconhecer em si as limitações da sua condição de ser sensível. É por esse motivo que o despertar se torna doloroso:

enfim, nestes cansados pensamentos

passo esta vida vã, que sempre dura.

Apesar do poeta ter consciência de que o sonho é pura ilusão, feito apenas de «cansados pensamentos», não deixa, todavia, de nele se refugiar desta «vida vã que sempre dura».

 

A Atmosfera Onírica

Um dos traços fundamentais do sonho, segundo J. Pierrot, é a sua intensidade emotiva. A experiência onírica nunca é neutra, indiferente ao sonhador. Este tanto mergulha na angústia como é arrebatado ao êxtase. Podemos mesmo afirmar que estas emoções antagónicas podem ser vividas sucessivamente no mesmo sonho: a experiência onírica pode manifestar-se como queda e, seguidamente, como voo. Seja qual for a natureza da vivência onírica, agradável ou angustiante, o sonho tem como consequência a solenização da existência humana. O sonhador entrega-se totalmente às suas aventuras oníricas parecendo-lhe enquanto as vive estar submetido a uma fatalidade transcendente. Mircea Eliade considera, por exemplo, que o voo e todos os simbolismos paralelos «traduzem uma ruptura efectuada no Universo da experiência quotidiana. A dupla intencionalidade desta ruptura é evidente: é, ao mesmo tempo, a transcendência e a liberdade».

J. Pierrot entende que o sentido oculto das aventuras do sonho aparentemente incongruentes e incoerentes se deve ao facto do sonhador estabelecer uma relação de significação entre esses acontecimentos, que encara como involuntários porque dependentes de forças exteriores e superiores, e o sentido profundo da sua existência.

 

Sonho e Literatura

 

O relato de sonhos é uma constante da literatura ao longo dos tempos. Contudo, desde há pouco, o sonho ascendeu na literatura à qualidade de tema literário autónomo tendo algumas obras sido criadas com a finalidade de evidenciar as suas potencialidades estéticas. A ascensão literária do sonho data na literatura europeia mais ou menos à época romântica.

 

Funções Literárias do Sonho

As funções do sonho dependem da sua concepção, da época, da sua natureza e das suas potencialidades.

No passado o sonho era considerado uma mensagem enviada pelos deuses para avisar, aconselhar e anunciar o futuro dos mortais. O sonho servia, assim, de ponto de contacto privilegiado entre o universo divino e o universo humano particularmente em obras como a Ilíada de Homero cuja acção se situa em planos paralelos: o destino de Tróia dependia quer do resultado do combate dos homens às portas da cidade, quer do desfecho dos conflitos que agitavam as diferentes forças divinas no Olimpo. Em Os Lusíadas também o sucesso da viagem dos portugueses à Índia depende quer dos homens, quer dos deuses. Neste caso o sonho tem como função unir os dois planos da intriga, o da acção humana e o da acção divina.

O sonho de Vasco da Gama no Canto II d’Os Lusíadas é um bom exemplo desta função do sonho. Mercúrio é enviado ao mundo dos homens por Júpiter para auxiliar os portugueses nos obstáculos por que estavam a passar na costa oriental de África tendo, para isso, aparecido a Vasco da Gama em sonhos:

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: - Fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o rei malvado tece,

Por te trazer ao fim e extremo dano!

Fuge, que o vento e o céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro rei mais amigo noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te!

( II, 61)

Mercúrio alerta o Gama dos perigos que corre em Mombaça e aconselha-o a prosseguir viagem pois encontrará um rei amigo, o rei de Melinde, que lhe proporcionará o apoio desejado. Vasco da Gama interpreta este sonho como uma revelação, um «celeste aviso», e não hesita em pôr em prática os conselhos de Mercúrio: «E, vendo claro quanto lhe revela/ Não se deter na terra iníqua tanto,/ Com novo esprito ao mestre seu mandava/ Que as velas desse ao vento que assoprava.» (II, 64).

Já que o sonho possui um carácter mântico, os autores recorrem muitas vezes a ele como forma de justificarem uma antecipação dos acontecimentos futuros, isto é, com a finalidade de instaurarem uma prolepse na narrativa.

Na estrutura da tragédia clássica, o sonho como prolepse contribui para o adensar da atmosfera de expectativa trágica, intensificando a impressão de fatalidade, ananké, preparando o leitor/espectador para os acontecimentos catastróficos que se avizinham.

É esta a função do sonho da Athalie inserido no acto II, cena 5 da tragédia com o mesmo título de Jean Racine (1639-1699) composta em 1691 e representada pela primeira vez em 1702:

Athalie

Un songe (me devrais-je inquiéter d’un songe?)

Entretient dans mon coeur un chagrin qui le ronge.

Je l’évite partout, partout il me poursuit.

C’était pendant l´horreur d’une profonde nuit.

Ma mère Jézabel devant moi s’est montrée,

Comme au jour de sa mort pompeusement parée.

Ses malheurs n’avaient point abattu sa fierté;

Même elle avait encore cet éclat emprunté

Dont elle eut soin de peindre et d’orner son visage,

Pour réparer des ans l’irréparable outrage.

Tremble, m’a-t-elle dit, fille digne de moi.

Le cruel Dieu des Juifs l’emporte aussi sur toi.

Je te plains de tomber dans ses mains redoutables,

Ma fille. En achevant ces mots épouvantables,

Son ombres vers mon lit a paru se baisser;

Et moi, je lui tendais les mains pour l’embrasser.

Mais je n’ai plus trouvé qu’un horrible mélange

D’os et de chair meurtris, et traînés dans la fange,

Des lambeaux pleins de sang, et des membres affreux,

Que des chiens dévorants se disputaient entre eux.

Este texto trata de um episódio do Antigo Testamento do II º Livro dos Reis onde é relatado o fim trágico de Atália, rainha do Judá, filha de Acab e Jézabel, casada com Jorão, rei de Israel e mãe de Ocozias. Atália seguia o culto de Baal e, com o intuito de exterminar os seguidores do Senhor de Israel, depois da morte do filho mandou assassinar todos os descendentes da Casa de David incluindo os seus próprios netos. Porém, Josabá, filha de Jorão, ajudada pelo sacerdote Jojaba, esconde Joás, seu sobrinho, durante seis anos, livrando-o do massacre.

Mas no sonho que Athalie relata a Abner, a personagem é assaltada por duas visões: a do espectro macabro de sua mãe Jézabel e a de uma criança em quem reconhecemos Joás pelas vestes que enverga:

Dans se désordre à mês yeux se présente

Un jeune enfant couvert d’une robe éclatante,

Tels qu’on voit des Hébreux les prêtres revêtus.

Sa vue a ranimé mes esprits abattus.

Mais lorsque revenant de mon trouble funeste,

J’admirais sa douceur, son air noble et modeste,

J’ai senti tout à coup un homicide acier,

Que le traître en moi sein a plongé tout entier.

É de sublinhar o contraste entre o horror que sugere a imagem de Jézabel , «un horrible mélange/ D’os et de chair meurtris, et traînés dans la fange/ Des lambeaux pleins de sang, et des membres affreux», e a figura cândida da criança «sa douceur, son air noble et modeste». Mas, paradoxalmente, a primeira é benfazeja e protectora já que Jézabel se dirige a Athalie antecipando-lhe a sua morte e, portanto, preparando-a para o fatal desenlace: «Tremble, m’a-t-elle dit, fille digne de moi./ Le cruel Dieu des Juifs l’emporte aussi sur toi./ Je te plains de tomber dans ses mains redoutables,/ Ma fille», ao passo que a segunda é maléfica e ameaçadora já que será ela a causa da sua morte. Athalie confessa a Abner que se deixou iludir pelas aparências e que foi com espanto que sentiu o golpe assassino perpetrado pelo jovem traidor: «J’ai senti tout à coup un homicide acier,/ Que le traître en mon sein a plongé tout entier». A personagem tenta libertar-se da angústia que lhe provocou este pesadelo, procurando convencer-se que este não tinha qualquer significado: «Un songe (me devrais-je inquiéter d’un songe?)/ Entretient dans mon coeur un chagrin qui le ronge».Todavia, os seus esforços são infrutíferos pois a mesmas visões não vão deixar de a perseguir: «Mais de ce souvenir mon âme possédé/ A deux fois en dormant revu la même idée».

O sonho tem também muitas vezes a função de exprimir de forma atenuada ideias audaciosas desempenhando um papel próximo da utopia tendo sido utilizado por alguns autores para exporem as suas ideias politicamente revolucionárias.

No século XVIII Denis Diderot (1751-1780) serviu-se da sua obra Le Rêve d’Alembert (1769) para fazer passar as suas ideias materialistas. J. Pierrot sublinha que neste caso e noutros semelhantes o sonho aparece como um simples artifício de exposição e o seu conteúdo nada tem de onírico.

A partir da época romântica, como já atrás referimos, o sonho tende a desenvolver-se autonomamente, tornando-se como que um género literário distinto favorável à expansão da imaginação e da sensibilidade poética. Para os românticos, a experiência onírica é reconhecida como o abandono total à imaginação e às faculdades irracionais o que faz com que o relato do sonho permita a essa imaginação manifestar-se livremente trazendo à superfície as tendências secretas do ser humano.

Antes de concluir a sua breve reflexão sobre as funções do sonho na literatura, Jean Pierrot coloca as seguintes questões: Em que medida a experiência onírica original subsiste na obra literária ou será o sonho na literatura apenas fruto da consciência e do trabalho intelectual? Tenderá o sonho a tornar-se mais um cliché, um convencionalismo literário, perdendo assim as suas potencialidades estéticas?

 

Sonho e Fantástico

Como o sonho ocasiona muitas vezes uma experiência do sobrenatural consequência da sua estranheza intrínseca, o onírico serve de suporte a parte da literatura fantástica. O sonho permite e intensifica a verosimilhança do insólito, do horror e do macabro tão do gosto do fantástico. Mas o onírico permite também explorar as questões que se colocam na interferência dos universos do sonho e da vigília. O fantástico decorre da hesitação do narrador e do herói face à verosimilhança de acontecimentos insólitos, hesitação essa que acaba por envolver o próprio leitor. Tzvetan Todorov define o fantástico como sendo «l’hésitation éprouvée par un être qui ne connaît que les lois naturelles, face à un événement en apparence surnaturel».

No conto de Gérard Nerval, «A Metempsicose» incluído no volume As Noites de Outubro (1852), o narrador debate-se com a dúvida perante o facto de ser reconhecido por uma outra pessoa ao ponto de hesitar perante as suas próprias certezas:

Já não sabia o que pensar de semelhante extravagância. Não podia ser uma partida premeditada; tê-lo-ia lido nas caras deles. Tomar-me-iam realmente por Wolstang? Isso era ainda menos crível, pois ele tinha mais seis polegadas do que eu, mais quarenta libras e era cinco ou seis anos mais velho.

O meu espírito perdia-se num labirinto inextricável de ideias e, procurando aclarar este mistério, pedia em vão a ajuda da lógica e da metafísica, sem esquecer o grande Euclides. O meu profundo estudo deste príncipe das matemáticas, que me tinha feito resolver os mais complicados problemas da ciência, aqui era-me completamente inútil;[ ...] O barulho dos passos de um recém-chegado arrancou-me a estes sonhos.

Segundo Roger Caillois, desenvolveu-se na China uma problemática literária associada a esta questão da hesitação entre o sonho e a vigília. A este propósito, J. Pierrot cita o famoso apólogo chinês do filósofo Tchoang-Tseu: «Uma noite, há muito tempo, eu fui uma borboleta esvoaçando feliz com o meu destino. Depois acordei sendo Tchoang-Tseu. Mas serei eu o filósofo Tchoang-Tseu que sonhou ser a borboleta ou uma borboleta que sonhou ser Tchoang-Tseu?».

A esta questão da incerteza sobre a realidade está associado o tema do sonho no sonho, jogo de espelhos através do qual se esbate o racional. Esta temática está relacionada com a perda da identidade, a despersonalização, a duplicação tão comum no sonho.

O tema do duplo, obsessão na obra de Gérard Nerval, é também um dos tópicos mais importantes da poesia de Mário de Sá-Carneiro (1890-1919). Num pequeno poema de 1914, diz o autor:

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim ao Outro.

O poeta revela a tomada de consciência da divisão que se processou no interior de si próprio, entre o Eu (primeira palavra da estrofe) e o Outro (última palavra da estrofe). A ponte, símbolo da transição do contingente ao imortal, da Terra ao Céu, mantém a unidade dos opostos que o poeta identifica como «qualquer coisa de intermédio» mas que, pela sua indefinição, se prevê como um estado efémero. Numa passagem do poema «O Ângulo», datado do mesmo ano, lemos:

- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes

Que um outro, só metade, quer passar

Em miragens de falsos horizontes -

Um outro que eu não posso acorrentar...

Agora o Eu e o Outro já não se encontram no mesmo plano. O poeta tem noção de que o Outro começa a dominar o Eu, «Um outro que eu não posso acorrentar...», fazendo adivinhar a ruptura total entre os dois opostos. A perda da identidade deu-se porque o poeta se encara como labirinto devido à sua natureza caótica como nos diz em «Dispersão» de 1913:

Perdi-me dentro de mim

Porque eu era labirinto,

E hoje, quando me sinto,

É com saudades de mim.

O recurso ao pretérito imperfeito "era" no segundo verso sugere que a despersonalização do sujeito constitui não só a perda da unidade mas também a conquista da lucidez de si próprio, o reconhecimento de que a unidade é simultaneamente caos. Apesar deste percurso autognóstico, o poeta confessa sentir nostalgia da sua unidade perdida: «E hoje, quando me sinto,/ É com saudades de mim».

Ao referir-se ao drama da dispersão em Mário de Sá-Carneiro, Maria Aliete Galhoz diz que o poeta buscou sempre no que criou «com uma espécie de fascinação de criança, o espelho caleidoscópio das personagens, para se mirar a si no maior número de ângulos de perspectiva e na maior ampliação possível dos primeiros planos até que, objecto de reflexão, se dissolvesse na rotação do conjunto reflectido».

Antes de terminar a reflexão sobre a relação entre sonho e fantástico, J. Pierrot faz ainda alusão aos sonhos vividos simultaneamente por duas personagens exemplificando com o romance inacabado Heinrich von Ofterdingen do romântico alemão Novalis, pseudónimo de Friedrich von Hardenberg (1772-1801), onde o protagonista confirma o seu sonho da Flor Azul com um sonho vivido pelo seu pai antes do seu nascimento, e com o texto composto na segunda metade do século XVI pelo monge italiano Francesco Colonna, O Sonho de Polifilo, onde se narra a história de dois apaixonados, Polifilo e Polia, que, separados pela vida, continuam a amar-se todas as noites em sonho.

 

Sonho e Poesia

O autor começa por referir as semelhanças que existem entre o sonho e a poesia. Tal como o sonho, a poesia é libertação da imaginação, é expressão da sensibilidade individual e da alma profunda. Tal como o sonho, a poesia utiliza a forma de expressão figurada, o simbolismo.

Foram estes aspectos comuns que levaram os românticos a estabelecer a identificação entre estas duas realidades. Por exemplo, o poeta romântico alemão Jean-Paul (1763-1825) diz que o sonho «é uma arte poética involuntária», o poeta dramático da mesma nacionalidade Hebbel (1813-1863) escreve «Creio cada vez mais que sonho e poesia são uma e a mesma coisa». Coleridge considera que «existe uma espécie de poesia edificada sobre as fundações do sonho».

De facto a maior parte dos escritores românticos concede ao sonho um crédito excepcional: este dá-lhes a possibilidade de entrarem em contacto directo com a harmonia da natureza; é nele que encontram uma fonte de inspiração privilegiada e é com ele que são enriquecidas as suas obras.

Cem anos mais tarde, os surrealistas, acreditando que o inconsciente é atravessado como que por uma corrente poética, procurarão no sonho, tal como na escrita automática, uma forma de captar fragmentos desse grande fluxo subterrâneo.

J. Pierrot pensa, no entanto, que sonho e poesia não se devem confundir já que o sonho para se tornar poesia necessita de sofrer um processo de elaboração mental. Para corroborar o seu ponto de vista, cita o poeta surrealista francês Paul Éluard (1895-1952) que na sua obra Donner à Voir (1939) diz: «Não tomamos o relato do sonho por poesia. Ambos são realidade viva; mas a primeira é recordação imediatamente usada, transformada, uma aventura e a segunda, nada se perde nem se transforma».

J. Pierrot sublinha que a poesia se alimenta de todas as regiões do ser, da vigília e do sono. A poesia transforma, transporta a ideia vital, fá-la ascender à sua aparência fortuita e individual, exalta--a até atingir uma significação que nos excede. Para ele o sonho não é mais do que matéria bruta cuja estranheza provoca o devaneio e a meditação.

 

Conclusão

 

Tal como referimos na introdução a este trabalho, o ensaio de Jean Pierrot que acabámos de apresentar, sendo uma síntese das principais questões que, segundo o autor, se colocam ao sonho, não tem como objectivo aprofundar cada uma delas.

Pensamos, contudo, tratar-se de um texto interessante visto servir de ponto de partida à reflexão e investigação da presença do sonho na literatura, tarefas que procurámos cumprir quer na exploração de textos literários que de algum modo abordavam a problemática do onírico, quer no alargamento de perspectivas teóricas subordinadas ao estudo do sonho.

 

 

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