Poética Camoniana
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Convenção e Inovação na Poética Camoniana

 

Regista-se, em 1995, uma efeméride cuja celebração ou memorial passou, a nosso ver, insolitamente despercebida. Com efeito, verificou-se, quanto sabemos, um emparcelamento de sessões comemorativas, algumas de nível científico indiscutível, mas a que faltou uma dimensão nacional: a primeira edição das Rimas (Rythmas) de Luís de Camões, em casa de Manoel de Lyra e organizada, ao que se supõe, por Domingos Fernandes.

Insolitamente despercebida, aliás, sobretudo se considerarmos em parralelo a importância pública, nacional e internacional (já que o Brasil por Portaria governativa, constituiu e nomeou para o efeito, uma Comissão Brasileira) dada ao quarto centenário da publicação de Os Lusíadas. Essas comemorações, ocorridas em 1972, foram ocasião de importantes eventos culturais de âmbito nacional nos dois países: da Exposição Bibliográfica, Iconográfica e Medalhística de Camões, realizada na Biblioteca Nacional de Lisboa (1972) foi feito um opulento Catálogo, exemplarmente organizado e anotado por J. V. de Pina Martins e prefaciado por Manuel Lopes de Almeida, Presidente da Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas. Esse catálogo continua a ser, passadas mais de duas décadas, um inestimável instrumento de trabalho e um notável documento. Verifrica-se, pois, uma desproporção na importância atribuída aos dois centenários de dois registos ou duas vertentes da obra total do maior poeta português. Ocorreria, talvez, tentar algumas explicações entre as quais não serão certamente a avaliação contrastante, na opinião de alguns críticos camonistas, entre o chamado "Camões lírico", autor das Rimas o "Camões épico" autor de Os Lusíadas. Opinião valorativa que, por simplista e radical, quando outras razões não houvesse, não subscrevemos nem perfilhamos.

Efectivamente, parece-nos, não existir um "Camões lírico" ao lado ou até versus um "Camões épico". A voz lírica e a voz épica não são senão uma única voz poética, cujos registos podem, certamente, percorrer toda a escala possível de poético. Ética e Estética, Convenção e Inovação, Modelo e dissidência são marcas de uma identidade literária complexa mas coerente, que torna uno o diverso e que se apropria igualmente do "lírico" e do "épico".

Expressões, imagens, reflexões e, até, intertextualidade podem ser detectadas numa leitura paralela: "Onde pode acolher-se hum fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o Ceo sereno / Contra hum bicho da terra tão pequeno? (Lus., I, 106). Interrogação ontológica, de sensibilidade, cremos, mais maneiristas que renascentista, evoca, inevitavelmente o "Céu severo, as Estrêlas e o Fado sempre fero que se erguem e se indignam "contra um corpo terreno, / Bicho da terra vil e tão pequeno" (Canção" III).

Se, por exemplo, colocarmos o nosso enfoque, como tópico recorrente, na teoria do petrarquismo ou neopetrarquismo e, nela, isolarmos o "amor" e a "imagem", encontrá-lo-emos como registo idêntico quer nas Rimas quer em Os Lusíadas. É o caso, no âmbito do Poema (épico, renascentista, periódico) do amor enquanto força transformadora e metamórfica "que em si está sempre as almas transformando" (Lus., III, 143), que converte o coração em pedra não, mas desejo aceso (Lus., III 142). Ou isso, será o "fogo que arde sem se ver" ou ainda transformação do "amador na cousa amada por virtude do muito imaginar"?

Na obra camoniana, tomada como grande unidade, surge-nos o fluxo de uma inspiração unitária na diversidade e até na dissidência: indubitavelmente, a Vénus) Laura, dualidade e/ou ambiguidade sobejamente analisada por António José Saraiva e Maria Vitalina Leal de Matos, entre outros camonistas. Ela está presente na abstracção (que é alusão) dos "laços que Amor arma brandamente / Entre as rosas e a neve humana pura, / O ouro e o alabastro transparente", do "olhar seguro, hum gesto brando, / Hua suave e angelica excellencia" (Lus., III, 142-143) - expressões que remetem, sem qualquer esforço, para os textos ditos líricos onde as "rosas, cravos, cécens", a neve pura, o ouro e os rubis se tornam (ou são já) outros tantos clichés criados para a representação de uma imagem irrepresentável. É ainda a Vénus do Canto II que surge como o modelo clássico que, em variações infinitas, vai surgir e ressurgir em toda a obra do Poeta: "Os crespos fios de ouro se esparzião / Pelo collo que a neve escurecia; / Andando, as lacteas tetas lhe tremião, / Com quem Amor bricava e não se via;" [...] (Lus., II, 36-37). Para não falar na imagem menos "pagã" de Inês de Castro, eis agora Tétis, "monte, sonho ou nada", ludíbrio de Adamastor, que a viu um dia "sair nua na praia", cujo "fermoso riso honesto", "os olhos bellos", "as faces e os cabelos" são, para Adamastor a cilada fatal.

A mesma, certamente cujo "rosto angelico" uma vez mais, tal como Circe, é vector de metamorfose: "Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo, / E junto de hum penedo outro penedo". (Lus., V, 51-59)

É ainda o mesmo estereótipo que surge e ressurge nas várias aparições de Vénus e das ninfas ao longo do Poema e Tétis, uma vez mais, com a coreia das Nereidas gentis de cabelos de ouro ao vento e "alvas carnes subito mostradas" (Lus., IX, 71-76). Mas interessa-nos sublinhar que, para além do estereótipo e do cliché se encontram os traços ou as marcas de dissidência ou, se quisermos, heterodoxia, em termos da convenção literária da época que, no fundo, uniformiza a paisagem cultural da Europa renascentista, italianizante ou italianizada: heterodoxia que transforma a convenção e os seus modelos apenas num ponto de partida para a invenção e a criatividade.

Se a inspiração petrarquista se reflecte, sobretudo, no retrato idealizado da perfeição, a descrição dos atributos físicos anuncia o convencionalismo de uma * beleza que tende, como já vimos, para o estereótipo: claros olhos, louros cabelos, tez branca, faces rosadas. Ao mesmo tempo, a mulher amada é caracterizada por uma serenidade clássica, por vezes fria no acolhimento das homenagens de amor, por doce riso, um gesto brando e sossegado. Esta mulher encarna e, por assim dizer, simboliza a teoria platónica do amor ideal e inacessível e representa a imagem clássica de Vénus; a qual, como veremos, Camões converterá nas imagens plurais do seu universo vivencial.

Conciliando o Saber (erudição) e o Viver (experiência), Luís de Camões acolhe na sua obra, simultaneamente, convenção e inovação e extrai delas uma dinâmica própria, um projecto global de apreensão da realidade: realidade pluridimensional, onde é necessário garantir a ordem na variedade, criando um novo mundo cuja captação provém de uma dinâmica do olhar e cuja cristalização se opera mediante uma também nova estética.

Essa estética em que se torna óbvia a subtil interferência entre poesia e pintura, numa incessante e inextricável permutabilidade, recupera a cada instante, em duplo sentido, a máxima horaciana ut pictura poesis ("a poesia é como uma pintura"). É por isso que os dois enigmáticos quadros de Botticelli, (pintados no último quartel do século XV) Primavera e Nascimento de Vénus, constituem o manifesto de uma Teoria do Amor, que amplamente se desdobra numa teoria estética, que encontra na poesia clássica e renascentista de Camões o seu mais nobre registo literário

Tomando como exemplo os dois aludidos quadros, verificaremos que, no Nascimento de Vénus, a transição do cenário elementar onde surge Vénus é definida pelo manto florido que vai ser lançado sobre ela, anunciando a sua transformação em Vénus vestida: será essa imagem, moderada, pacífica, benéfica, um dos mais refrescantes e surpreendentes paradoxos do neo-platonismo, capaz de justificar o quase herético epíteto de António Ferreira: "Santos amores de uas ninfas raras" Tratar-se-á então de "alma Vénus" expressão tão cara a Camões, a Vénus criadora e nutriente e é ela que, nas suas múltiplas aparências, permitirá, enchê-la de flores, torná-la variedade ridente, enchê-la também de sons e de música que marcam os ritmos e movimentos.

Esta parece, pois, ser a imagem que, cristalizada como representação da perfeição totalizante, será incorporada no lirismo quinhentista, não tanto como apreensão vivencial, mas como imagem abstractizante de uma beleza imaginária, interiorizada, mas que, precisamente por isso tem em si própria o seu referente. Imagern com raízes fundamentadas num sistema de conceitos, da qual o discurso literário se apropria e que cristaliza, assumindo o seu mais perfeito expoente na lírica camoniana.

Referente de si própria, numa espécie de autismo estético, dessa imagem resulta, por assim dizer, uma desumanização e, em consequência, um impedimento vivencial. É talvez por isso que em alguns dos sonetos, canções, odes e éclogas de estirpe caracterizadamente italianizante e clássica, se encontra o fermento ou a semente de uma dissidência em relação ao cânone convencional.

Na Canção V (ed. cit.) por exemplo, após ter confrontado a imagem da Aurora-deusa com a imagem da sua Amada, o poeta reconhece que esta se dilui quando se esbatem os próprios tons e coloridos da manhã:

Assim como acontece

A quem a cara vida está perdendo,

Que enquanto vai morrendo,

Alguma visão santa lhe aparece,

A mim, em quem falece

A vida, que sois vós, minha Senhora

A esta alma que em vós mora

 

(Enquanto da prisão se está apartando)

Vos estais justamente apresentando

Em forma de formosa e roxa Aurora [...]

Nesta canção, efectivamente, não encontramos retrato mas representação. Camões começara por pintar, em termos classicizantes e mitológicos o aparecimento da manhã:

Já a roxa manhã clara

As portas do Oriente vinha abrindo,

Os montes descobrindo

A negra escuridão da luz avara.

Pinta, então a progressiva conquista das trevas pela luz, do nocturno pelo diurno. A definição iluminada das cores que adquirem os seus tons sob o efeito da luz. E essa pintura que vai representar, por "efeito de amor alto e potente", a formosura da Amada. Incapaz de a retratar, ele apenas a representa, porque o retrato requer um referente e requer também, como instrumento de captação e aprisionamento a técnica do olhar e a teoria da visão. Inexistente, a Senhora é apenas a morada da sua própria alma: "A esta alma, que em vós mora [...] Vos estais justamente apresentando em forma de formosa e roxa Aurora".

Síntese de quantas perfeições, no grau absoluto, existem dispersas na Natureza, ela é lugar de convergência do disperso, sinal de união de contrários, logo, ideia despojada do transitório e, portanto do humano. É isso que de uma maneira extremamente clara e até crítica o Poeta exprime essa "desumanização" no soneto, em que, depois de a pintar e até de a assimilar não só às Graças como a Vénus, Minerva e Diana, termina, dizendo:

Despojai-vos de toda essa grandeza

De dões; e ficareis em toda a parte

Convosco só, que é só ser inumana.

Ora, "Homem formado só de carne e osso", como poderia Camões desprender-se do Humano ele, poeta excelente dos valores do Homem? É por isso que essa imagem "pintada" da mulher, que se dinamiza ao potenciar a verdura dos campos e a amenidade da Natureza, de cuja presença ou ausência depende a serenidade dos campos, como tantas vezes, em redondilhas ou em verso clássico, ela aparece, vai sofrer uma metamorfose, por imperativo do real. Então, Vénus realiza-se segundo duas hipostases: à "rosa em suaves molhos", aos "louros cabelos" e à "neve", vai contrapor-se o "rosto singular", os "olhos ... pretos", "pretos os cabelos" e, em suma, a "pretidão de Amor", que constituem o excepcional retrato das Endechas a Bárbara Escrava.

A tez rosada ("nunca vi rosa"), os cabelos louros ("pretos os cabelos onde o povo vão perde opinião que os louros são belos"), a neve, enfim, são os elementos que, provenientes da convenção clássica, se instituem como lugares de contrastividade, em face da inovação: "pretos os cabelos", "pretidão de Amor".

Da emergência do conceito de subjectividade, surge uma recusa de absolutização, postulando a relativização. O Amor deixa de depender da Venustas, ou Absoluta Beleza, derivação do Uno absoluto, corporizado por Vénus. A Beleza e o Amor deixam então de ser unitários para revestirem a pluralização que a própria Realidade, rebelde, afinal, às imposições de uma convenção, evidencia.

Esta nova imagem que o poeta retrata como um "rosto singular, olhos sossegados pretos e cansados", "pretos os cabelos", "pretidão de Amor" e "doce figura" responde, certamente e propõe-se como modelo replicante e contrastivo à convencional imagem da beleza potenciadora do Amor, e propõe-se desta vez como imagem directivamente derivada e colhida do Real. Singularidade ("rosto singular"), e estranheza ("bem parece estranha") são agora pontos de partida para a emergência de uma nova Primavera e de um novo Nascimento de Vénus.

Se, a primeira Vénus, dourada e luminosa, a Vénus boticelliana, "os ventos serena, faz flores de abrolhos, faz serras floridas, faz claras as fontes", a segunda, "presença serena, a tormenta amansa". Potenciadora do amor, ela potencia também a pacificação do espaço e a emergência do locus amoenus. Analogias, porém, que se acompanham de dissemelhanças. Enquanto a primeira pode causar a morte por amor, fazendo o poeta "morrer em tão penoso e triste estado", a segunda possui "olhos sossegados, pretos e cansados mas não de matar". Os seus poderes dilatam-se e não só serena a tormenta enquanto fúria dos elementos, como nela descansa também a dor do poeta e a sua tormenta interior: "nela enfim descansa toda a minha pena". Enquanto a primeira se apresenta como deusa e, mais do que deusa, como hipostase múltipla da divindade, a segunda, pelo contrário é humana e é cativa. Ela tem, no entanto, cativo por amor o seu poeta. Note-se a polissemia, jogo de analogia e dissemelhança do lexema que integra o paradigma cativo / cativa.

Suavizando com a sua presença a dor do poeta, reencontramo-la, talvez num dos mais enigmáticos sonetos:

Um mover de olhos brando e piedoso

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

 

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

 

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento;

 

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.

O retrato constitui, pois, um dos temas favoritos do petrarquismo, retrato idealizado, expressão do espírito, mais do que representação corpórea.

Dir-se-á que o poeta, num esforço de superação, aspira a ler mais do que a ver e que, transcendendo formas e cores, contempla

[...] a graça pura

a luz alta e severa

que é raio da Divina formosura.(2)

Nada há que não sirva à representação de um espírito repousado e repousante:

- mover de olhos brando e piedoso,

- riso brando e honesto,

- medo sem ter culpa,

- longo e obediente sofrimento.

Caminho de ascese, em que a forma sensível parece diluir-se a favor de uma Beleza inteligível, remetendo, uma vez mais, para o neoplatonismo, cujo texto doutrinário, por excelência, é, sem dúvida Babel e Sião.

A pura bondade, a mansidão, a capacidade de sofrer seriam, assim, o filtro mágico que operou a metamorfose, libertando-o dos sentidos e elevando-o ao divino inteligível.

A palavra "veneno", operando como filtro amoroso, agora empregado por uma nova Circe, em vez de transformar, por força da sensualidade, os homens em animais, como a feiticeira da Odisseia, caminha para o Divino, por força da mansidão, da bondade, enfim, da celeste formosura. A imagem de Circe evoca, por outro lado, a figura de Ulisses, o viajante atormentado e perdido pelo mar -- imagem que bem convém ao génio e ao destino de Camões.

Tal interpretação que integra o famoso soneto nas composições neoplatónicas, contraria a hipótese formulada por alguns camonistas que, considerando-o o primeiro do ciclo dos sete sonetos de Dinamene, reflectiria a nova amada que, com a sua "aparente impassibilidade" revolucionara o coração do poeta e expulsara a sua antiga paixão pela infanta D. Maria: hipótese de abandonar, se, com António Sérgio, (António Sérgio, Ensaios, vol. IV), considerarmos a não penitência de tais identificações de que José Maria Rodrigues, foi um dos paladinos, alimentando a lenda e instaurando uma polémica de que neste momento nos não ocuparemos e consideramos ultrapassada.

Para uma interpretação cultural deste soneto, importa ainda esclarecer a função analógica das alusões do último terceto a Circe e ao "mágico veneno".

Trata-se de uma alusão ao episódio do Canto VI da Odisseia, em que Odisseu (Ulisses) narra a sua chegada à ilha da feiticeira Circe que transformava os homens em porcos, por meio de uma beberagem a cujo sortilégio Ulisses escapou mediante uma planta maravilhosa dada por Hermes. Tem-se de resto interpretado de várias maneiras o significado dessa transformação, a que foram sujeitos os companheiros do herói. É, pois, o tema da transformação por magia que está na base da interpretação de Camões. Mas, enquanto a Circe homérica transformou os homens em animais, a Circe camoniana, que é "celeste", transformaria o amor instintivo e sensual num amor espiritual, de raiz platónica.

Em jeito de síntese, podemos dizer que na poesia camoniana e na de alguns dos seus pares encontramos de certo modo uma heterodoxia ou um desvio à convenção literária, o qual tem como paralelo, se explica e explica a pluralidade do objecto amado, também largamente testemunha pela obra de Camões: "os casos tão diversos", as "várias flamas", raiz e estímulo da sua produção poética opõem-se à univocidade da laura petrarquista. "Desculpado por certo está Fernando/ Para quem tem de amor experiência..." (Lus., III, 143) é um comentário que remete para essa supremacia do real e da vivida, da vivência que substitui a visão ou a pura representação e que leva o Poeta no soneto que introduz, como prólogo, a colecção dos seus sonetos a exclamar:

"Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

A diversas vontades: quando lerdes

Num breve livro casos tão diversos

(Verdades puiras são e não defeitos)

Entendei que, segundo o amor tiverdes

Tereis o entendimento de meus versos".

Experiência, saber e vivência, glória e memória, convenção e inovação constituem, assim, a matéria de que é feita a poética camoniana quer lhe chamemos líricda ou épica, renascentista ou maneinista. Nessa obra, como um todo, se inscreve um novo conceito, que se traduz na subjectivização da Beleza e na subjectivização do Amor, através de uma deslocação da motivação poética que deixa de situar-se no distanciamento de uma imagem, para se inserir e enraizar na aproximação do Real e na autenticidade da vivência. A partir daí, nao podemos deixar de verificar um abalo profundo nos cânones objectivos da Beleza, a par da instauração da eficácia e da soberania do subjectivo, consequência inevitável da substituição da concepção unitária pela concepção plural do Mundo, mundo não já plano, mas modelado pelo percurso dos Homens.

É para esse Mundo incerto, inquietante e desconcertado que remete uma ampla área do discurso poético camoniano. Mesmo quando, aparentemente, se trata de uma queixa pessoal, trata-se, mais do que isso, de uma reflexão em que, a partir de si mesmo, generaliza e, em suma, filosofa sobre o Mundo e sobre as coisas. Condensado na célebre "Esparsa", amplamente explicitado nas "Trovas", o desconcerto não é mais do que uma invectiva violenta contra a injustiça, a ambição, declaração de uma inquietude nascida da consciência exacerbada da instabilidade universal.

Esparsa ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar

no mundo graves tormentos;

e, para mais me espantar,

os maus vi sempre nadar

em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

o bem tão mal ordenado,

fui mau, mas fui castigado:

assi que, só para mim

anda o mundo concertado.

 

 

Maria Leonor Carvalhão Buescu

(Profª Catedrática da U.N.L.)